A DOENTE
O espelho do quarto de casal, posto na parede rósea, reflete Patrícia Dias nua. Sua concentração é entornada por seu seio esquerdo, ou melhor, no espaço riscado em que não existia mais seio. No início era uma vermelhidão, parecia até uma alergia, às vezes detinha uma queimação passageira, outras uma coceira rápida, mas com as semanas passou a ficar áspero, com bolhas, sangue e dores. A primeira decisão foi ir ao dermatologista, que intrigado com os sintomas apenas recomendou pomadas que não resultaram em nada, a não ser perca de tempo. Em seguida marcou consulta com sua ginecologista, que, imediatamente, reconhecendo o problema, a encaminhou para um mastologista¹. Fez-se mamografia, ressonâncias magnéticas e os exames físico e histopatológico, concluindo que tinha a Doença de Paget. A partir de então, o que seguiu foram remédios, correrias, tratamentos, tentativas, frustações, tristezas, questionamentos, hospitais, grupos de apoio, mais medicamentos, novas chances, terapias, curas, falhas, angústias...
Patrícia era uma mulher bem resolvida, de 57 anos, viúva há oito e também aposentada há três anos, havia dedicado sua vida à carreira de policial, sempre cuidava das ruas de Santa Catarina, do bairro, dos desaparecidos, das famílias, das crianças, dos comerciantes e também dos jovens, buscava fazer o melhor e isso lhe proporcionou diversas honras, agradecimentos e reconhecimento, tanto dos colegas de profissão quanto da população da cidade, ao longo dos anos. Era otimista, tinha boas perspectivas e como toda adolescente sonhava com amor, que lhe veio aos 25 anos, uma empresária que viera para uma conferência de tecnologia, o seu amor à primeira vista; namoraram, casaram² e também encontraram o fim, pois Amélia falecera num atropelamento ocasionado por um adolescente bêbado recém-saído de uma balada. O que ficou de sua esposa foi às belas lembranças de uma vida compartilhada, o desejo de terem filhos, a casa construída aos poucos e também um ritual, usar uma camiseta rosa, pelo menos uma vez na semana, porque, de acordo com sua amada, era a cor que dava brilho a seus olhos negros.
Quando você assiste aos canais noticiários nunca imagina que acontecerá com você. "Até parece que vão me sequestrar, não vão abusar de mim, não vou ser roubada, não vou ser morta, não tem um psicopata na minha vizinhança, não tenho um namorado ou um colega louco na minha classe". Era exatamente assim que Patrícia se comportava, com suas cargas d'água da velhice não cogitava a possibilidade de ser pega por um assaltante e muito menos que esse "crime" fosse cometido por um câncer de mama. Ao ser diagnosticada o primeiro transtorno que a tomou foi o choque, a desestruturação atingiu em cheio a mulher que antes tinha todas as suas bases sólidas, se viu nervosa com o que aconteceria a partir dali, impotente por não ter o controle, perturbada pelo futuro e sozinha. Os questionamentos vieram logo depois a apresentando a depressão, começou a ficar indiferente com o cotidiano, seu raciocínio diminuiu, a fadiga foi crescendo, as pessoas a distinguiam mais distante. Em contratempo os sorrisos divididos com Amélia vinham na mente, à felicidade que teve ao seu lado, os bons momentos, as boas viagens e os bons resultados dos exames, divagava que se a tivesse consigo seria mais fácil, doeria menos e teria mais esperanças.
Uma das grandes consternações do câncer é descobri-lo tardiamente, isso porque as possibilidades de cura estão associadas com o estágio dele. O de Patrícia estava evoluído o suficiente para requerer uma mastectomia³ total e quimio-radioterapia como adjuvante. Com as exigências em processo a Sra. Dias foi abandonado às perspectivas favoráveis, sua alma foi invadida por indiferença, como os outros tratamentos não obtiveram êxitos, em sua mente, esses também não teriam, apenas teria novos enjoos e constantes dores de cabeça. Suas madeixas começaram a cair, primeiro alguns fios no banho, outros ao se pentear, colocar uma roupa, deitar na cama e sucessivamente até que uma das enfermeiras a levou ao salão de cabelereiro e em pouco se parecia a uma monja intelectual. Mal se acostumou com a nova imagem de si mesma, teve a cirurgia da retirada de mama marcada, seria na sexta feira seguinte.
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A morte barafustada
Short Story''A morte não é um fruto proibido mordido por tentação, é degustada por temerosas almas e acalentada como uma mãe ninando ao filho.'' O Parque Nacional de São Joaquim, em Santa Catarina, é a arena da existência de algumas mulheres. Talvez se pareçam...