3 • 1992

33 15 2
                                    

A OUTRA

     Coexistência funcional é da água com o fogo, do frio com o calor, do norte e do sul, do claro e do escuro, do dia e da noite, do sorvete e da sopa, do biscoito e da bolacha, do preto e do branco. A coexistência escroque representa se não mais a pusilanimidade do homem. E enquanto as vidas do planeta se coexistem como os micro-organismos do corpo, Rochelle Gimenes despeja suas lamúrias no consultório de sua psicóloga, que a propósito é uma das mais, se não a mais, competente do país, que por sua vez, também a mais cara. Dinheiro nunca foi e será o problema da família Gimenes, isso porque são de uma linhagem de políticos, ricos a custas da população sem dispor dos menores dos escrúpulos. Gastam como se não houvessem amanhã e criada no meio de tantos valores simples, a garota, de olhos azuis e cabelos negros compridos, não poderia ter outra personalidade: é a cristalizada mimada, fútil e ligada ao mais tenro materialismo de Kant¹.

     As anotações, intervenções claras dos desabafos da paciente, ao longo da consulta parecem ser criadas com facilidade e o relógio murmura o fim da hora combinada, desta forma, as mulheres se despedem e a agenda de ambas dá continuidade às tarefas restantes do dia. A futilidade de Rochelle ficou estrondosa depois do seu aniversário de 15 anos, que contendo cada detalhe exigido ganhou muitos tons insuportáveis. Roupas brancas foram aplacadas como suas preferidas e a cada troca apresentava uma elegância branca jamais semelhante a anterior. Sua decadência é esticada semana após semana, percebida por todos ao seu redor, aos comerciantes, aos entregadores, aos empregados, a absolutamente cada ser humano que a mantivesse numa troca de palavras por mais de um minuto.

     Parece nunca se cansar de dar valor a coisas materiais, se esquecendo, eternamente, do carinho que existe na humanidade. Um abraço, um beijo, um afago, um cafuné ou um estralo de orelhas não são os toques mais aceitos por Rochelle, a qual prefere uma massagem no SPA de sua tia Lúcia, que com um dos maiores resorts do país, oferece os melhores tratamentos para dores com suas terapias alternativas mais recentes.

     Em outro lugar, numa órbita contrária a de Rochelle, reside Alette Paula, de 24 anos, que descansa depois de uma noite agitada. Seus clientes haviam sugado sua energia até o último segundo restante, o que não se dava ao luxo de reclamar, já que diferentes corpos proporcionam diferentes prazeres e prazeres são os mais belos porres e ressacas da existência de alguém. Uma hora atrás estava com um motorista imberbe, parado com o carro na frente do pequeno espaço que ocupava na calçada, intimamente o reconhecia, mas sua mente bloqueada pelo álcool apenas permitiu-lhe que a levasse para o motel do final da rua, onde as mais prodigiosas ações foram cometidas com o desejo lascivo do corpo sendo atingido.

     Sua história não vale o tempo para ser contada ao todo, o que Alette ressalta quando questionada de sua origem é que sua pele é branca como o dos holandeses, sua graça é a dos franceses, sua voz dos russos, seus olhos dos alemães, seus lábios dos espanhóis, sua postura dos japoneses, sua amabilidade dos indianos, sua força dos africanos, sua lástima dos americanos, sua musicalidade dos colombianos, sua honestidade dos brasileiros e sua essência é resultado da arte do mundo que conheceu. A única tolice que reserva em seu íntimo é o inchaço de sua autoestima, quando sozinha em seu quarto, se aprecia no espelho como uma beldade do paraíso, como se não fosse a si, mas a outra que toca, como se quisesse alcançar além de si e incapaz disto se irrita, termina por quebrar os vasos de flores próximas a janela do segundo andar.

     Uma patricinha e uma prostituta. Uma vive nos muros do palácio e a outra nos portões do submundo. Uma possui a riqueza do dinheiro e a outra o prazer lascivo. Uma é aparvalhada diante das pessoas e a outra estimula a vermelhidão das bocas. Uma toma drinks afrodisíacos, a outra doses de tequila com sal e limão. Uma usa roupas importadas, a outra andrajos das pechinchas mais desmazeladas da cidade. Uma frequenta desfiles e a outra passarela com poli dances. Uma escuta MPB e jazz, a outra rock e eletrônica baiana. As duas são uma. Uma noitada, uma comprada. A coexistência ainda não é aceita, brigam ao cair do sol pela posse do controle, o dia é de Rochelle, a noite de Alette. Uma prancheta, duas pranchetas.

A morte barafustadaOnde histórias criam vida. Descubra agora