Mulher de Branco

9 0 0
                                    

O homem caminhava com o cotidiano na esperança do acaso mudar sua vida, enquanto o imprevisível não surge, ele apenas mata mais um dia como um coveiro que fecha só mais uma cova.

A monotonia do dia a dia gera a comodidade, mas sua mente não era aliada do comodismo, sempre sonhava em morar em outros lugares do mundo, participar de grandes aventuras e descobertas. Porém tinha suas raízes tão presas e profundas como de uma grande árvore, que alguma mudança parecia ser improvável.

Ao sair do trabalho sempre caminhava lento e trôpego, ficava avistando a mudança das tonalidades do céu, reparava como os transeuntes andavam, conversavam ou como se distraiam. Apenas na sua imaginação era capaz de divagar entre as ideias, pensar como seria uma vida que fosse diferente, se talvez largasse tudo, apenas trocasse de emprego, mudasse de cidade, focasse em algum hobby ou se tentasse encontrar alguém novamente. Logo o transporte surge para transportá-lo para a realidade, voltando a seu âmbito social. Apenas pensou que talvez juntando toda sua riqueza, ou talvez com o dinheiro do seguro desemprego fosse capaz de conseguir montar um novo empreendimento, mas só matava o tempo deixando ser iludido na esperança do talvez, de um talvez que nunca será concretizado.

Com a noite veio o cansaço, do cansaço veio o sol, do sol o som do alarme, que persiste e insiste, para então trocar os pés pelas mãos e cair de volta à condução, para enfim bater o ponto e depois batê-lo novamente.

Agora estamos aonde começamos, o homem não podia deixar simplesmente sua vida passar e não fazer nada, então tomou uma dose de coragem e duas de ousadia, se o acaso não surge para o homem, ele decide ser o agente do próprio acaso.

Havia uma praça movimentada próxima ao trabalho, ele então foi sentir o gosto da noite, observou grupos que se formavam para compartilhar suas conquistas, alguns esbanjavam sua vaidade, outros deixavam cair ao chão um pouco de seu grande orgulho para atrair as asas da inveja. Por um breve momento viu a luxúria ser convidativa pelos cantos das esquinas, mas nada parecia brilhar os olhos do homem em meio à orquestra de hipocrisias. Sentou em um banco no centro da praça teatral, enquanto cogitava sobre qual grupo ele poderia ser encaixado, um velho homem se sentou ao seu lado, o seu nome talvez fosse acaso.

Ele sentou e logo começou a falar sobre sua vida de sucesso, aquela história parecia ser tediosa como qualquer outra. Mas então ele começou a falar sobre a vida das pessoas que estavam rodeando a praça. Ele contou a história de um mendigo que estava ali pedindo comida no chão da praça, na verdade ele era filho de um grande empresário, mas toda sua trajetória e suas escolhas o levaram a estar naquele local. Falou sobre um homem que vendia balas e guloseimas próximo à estátua, aquele rapaz tem uma bela voz, mas ele só encontrou a rejeição nas primeiras tentativas, sua frustração fez abandonar uma vida de felicidade e harmonia que nunca terá. Depois apontou para um homem dentro de um restaurante, ele estava rodeado por pessoas que riam de suas piadas e se satisfaziam de uma mesa farta e pomposa, ele contou que todos riam dele apenas por cordialidade, que mesmo estando rodeado por um mar de gente, ele continuava solitário, pois ninguém dava atenção para quem ele era ou o que pensava.

Sentado no banco, o velho apontava para as pessoas e descrevia quem elas eram fora de suas cascas, quais seus conflitos e seus traumas. O homem que nunca tinha visto o velho na vida, arriscou perguntar se ele saberia como achar a felicidade. O velho apenas deu um sorriso fagueiro, com um gesto convidativo acenou com dois dedos e chamou uma mulher exótica, de primeiro ela gerou certa rejeição do homem, mas o velho pediu para não julga-la por sua aparência diferente. Ela vinha de vestido branco, com seus cabelos esvoaçantes e cinzentos. O velho apenas nos apresentou e depois retirou-se.

A estranheza do primeiro contato ocasionou um desconforto, mas conforme a conversa prosseguia sua forma de falar e o jeito que sua silhueta se destacava, fez o homem sentir preencher um vazio que continha em seu peito. Rapidamente o homem estava hipnotizado pelo encanto da mulher, ela ganhava a noite e ofuscava o brilho das estrelas, seu devaneio fez o homem recair sobre o banco e em um beijo com sabor de fel, o homem ficou perdido em seus próprios pensamentos e então sentiu um alívio por estar em sua presença.

A mulher assim como a noite se desfez, com a sua ida, ela o fez lembrar que estava na hora de voltar para casa. O brilho da cidade logo cessara, o murmurinho das pessoas foi substituído pelo sopro do vento na janela da condução, apenas o gosto perene do beijo daquela mulher em sua boca foi à lembrança que lhe marcou a noite.

O raiar do sol incitou novamente o alarme incessante, o som do cotidiano batia a sua porta, prestes a dar mais uma volta no ciclo de sua vida. Tudo se repetiria, mas no pôr do sol o homem avistou a mesma mulher da noite passada, dessa vez já não houve muita cerimônia, logo relembrou o sabor amargo de sua boca.

Os dias começaram a passar com um novo propósito, só vivendo ao pôr do sol de quando novamente encontrava a mulher, sua fala pairava no ar e aquilo tirava o peso de seus ombros, assim fazia esquecer todo o dia que passou e essa moeda de troca era valorosa.

Logo se viam com mais frequência, ela estava em sua casa, nos intervalos do trabalho e sempre antes de dormir onde ela afagava seu peito, transformava todo o cansaço do dia em conforto e o homem sem pensar apenas se deixava levar pelo marasmo.

Sem notar o homem estava numa teia, era controlado e dependente dos sentimentos que a mulher trazia. Era dependente dos devaneios para suportar sua vida escrava, onde cada dia sentia-se mais cansado, trabalhava cada vez mais, compadecia cada vez menos pelas pessoas, seus ideais já não eram os mesmos, antes julgava pelos rótulos sociais, agora carregava todos como um adereço e via cada segundo de sua vida ser barganhada por notas de papel. Um homem que logo voltava a seu estado natural, pois surgiu das cinzas e agora via as mesmas cinzas se desfazerem ao vento, esse era o preço árduo a ser pago.

O homem que teve sua vida mudada por uma moça, agora já a chamava de sua mulher, depois contentou por diversas vezes em torna-lá sua amante, mas só depois ao chegar no ponto sem volta, aonde não tinha mais forças, estava solitário e assolado por uma doença degenerativa, ele voltou por fim, aos braços sua daquela mulher, para que não termina-se toda sua história ao relento.


O homem voltou ao banco da mesma praça, já havia ganhado quase tudo, mas em troca nunca teve uma vida. Nunca teve uma vida de riscos, nunca viajou o mundo, nunca se aventurou, nunca teve uma vida que gostaria de ter vivido e só deixou suas penosas lágrimas naquele banco. No fim deixou a mulher como sua viúva, deleitando de um último beijo, roubando todo seu amargor e soltando em seu último fôlego um ar pesado, para que pudesse ver que sua mulher nada havia mudado, ainda tinha a mesma aparência, usava o mesmo vestido branco, que por vezes fora preto ou marrom, mas nesta última vez permanecia o mesmo branco, seus cabelos esvoaçavam cinzentos sobre o céu, o homem avistou-a até ela desaparecer e seu olhar por fim escurecer.

Meu Caderno VisceralOnde histórias criam vida. Descubra agora