Os dias no Inferno nunca haviam sido tão ruins.
Naturalmente, as expectativas nunca eram exatamente altas, porque o lugar era — literalmente falando — o Inferno, com grutas escurecidas, demônios e almas torturadas, e fogo crepitante brilhando no chão.
Entretanto, nos últimos tempos, as coisas andavam péssimas até mesmo para aqueles padrões. A diminuição na população estava incomodamente evidente; as almas mortas (antes tantas que tornavam-se incontáveis), agora mal eram o suficiente para uma partida de vôlei; a inegável fuga de demônios para o Céu era perceptível, de modo que as almas velhas começavam a tentar mais fugas, sendo que a segurança estava baixa. Mas o pior era, com certeza, o humor que o Chefe estivera nos últimos dias.
"QUEM É A ALMA PENADA QUE COMEU O ÚLTIMO BISCOITO DA CAIXA EXTRA?!" O rugido brusco e irado ecoou por todas as paredes apedrejadas do Inferno, fazendo com que Leo se encolhesse ligeiramente, deixando escapar um suspiro cansado.
Todas as cabeças na gruta viraram-se quando uma porta escancarou violentamente, revelando a imagem de um fumegante Chefe. Seus olhos, geralmente enegrecidos, brilhavam em vermelho sangue, e o cabelo flutuava como fogo acima de sua cabeça. Mantinha uma expressão enraivecida no rosto branco, e seu porte pequeno e rechonchudo não o deixavam menos intimidante com aquela aura raivosa o rodeando.
"ME DIGA QUEM COMEU MEUS BISCOITOS PARA QUE EU POSSA MATA-LO NOVAMENTE!", berrou o Chefe. Seus olhos semicerrados passaram por toda a multidão até pousarem em um dos demônios quietos e nervosos do fundo. O Chefe arfou em indignação, como se o demônio tivesse acabado de cometer traição. "LARRY! SEMPRE SOUBE QUE ERA VOCÊ! MORRA!"
Apontou um dedo para o pobre Larry, que imediatamente dissolveu-se em chamas vermelhas. Leo não achava que aquela era o curso de ação mais esperto sendo que eles estavam em falta de pessoal, mas não seria ele a discutir com o Chefe enquanto este estava irritado. Ao invés disso, observou conforme ele gritava em raiva mais uma vez, antes de fechar-se novamente no escritório, o cabelo flamejante lentamente voltando a coloração azul.
"Ele está realmente enlouquecendo", comentou uma súbita voz ao lado de Leo, fazendo o garoto saltar ligeiramente. Ele olhou para o lado apenas para encontrar a figura pálida e sombria de seu amigo demônio, Nico. Com sua atitude raivosa e assustadora, asas com variantes tons de negro e cinza escuro e ameaçadoras aflorando entre suas costas nuas, com pequenos chifres encouraçados destacando-se entre os cabelos negros, e presas afiadas saltando de sua boca, Leo achava que Nico era a pessoa mais assustadora em todo o Inferno (e aquilo era dizer bastante coisa).
"É", concordou Leo, trocando o peso dos pés de modo que as asas não pesassem tanto em suas costas. "É a quinta pessoa que ele incinera essa semana. Tipo, eu sei que biscoitos são coisa séria, mas isso é um pouco pesado"
"Falando sobre o Chefe?", perguntou Piper, batendo as belas asas emplumadas e multicoloridas enquanto voava em direção a eles. Ela abriu um sorriso, exibindo os caninos afiados, ao mesmo tempo em que jogava os cabelos castanhos e cortados de modo desleixado por cima do ombro, deixando os chifres ligeiramente visíveis. "Se for, então vocês estão certos: ele enlouqueceu de vez."
"Não é como se ele não tivesse um bom motivo", disse Nico, encolhendo os ombros. "O Inferno está realmente uma bagunça. Se continuar assim, quando O Dia finalmente chegar, vamos perder feio para aqueles frescos do Céu."
Á menção do Céu, os três demônios franziram o nariz em desgosto, Leo até mesmo soltando uma risada acasalada em desdém. "Isso sim seria um inferno."
"Só espero que o Chefe ache uma solução logo", resmungou Nico. "Não aguento mais ter que ficar segurando almas desses desgraçados que acham que podem fugir."
"Não se preocupe", disse Piper em tom de consolo, embora houvesse certo escárnio ali também, porque ninguém no Inferno honestamente consolava. "Tenho certeza que uma solução vai surgir logo, logo."
Dita solução acabou por chegar uma semana depois.
Nesse meio tempo, Leo ocupou-se com suas tarefas ordinárias como demônio. Fez seus turnos ao vigiar as almas presas nos calabouços, relaxou com Piper e Nico em seus quartos (que eram, na verdade, pequenas grutas espalhadas pelas paredes de pedra no abismo do Inferno), desafiou Piper a ver qual dos dois chegava mais perto do fogo ardente sem queimar as asas, e incomodou as almas desafortunadas que estavam presas nas masmorras.
Ele estava justamente crepitando por trás de uma das almas mortas para empurra-la no fogo de brincadeira, quando um pigarreio alto ecoou como um trovão por todo o Inferno, atraindo a atenção de todos para o escritório do Chefe, que era na gruta mais alta.
Silêncio espalhou-se imediatamente, Leo até mesmo engolindo seu grunhido de frustração ao ter a pegadinha arruinada.
"Eu tenho um anúncio!", berrou o Chefe, o que Leo achou desnecessário, sendo que todos poderiam ouvi-lo mesmo que ele murmurasse.
Chefe tinha uma expressão satisfeita e prepotente no rosto, quase como se seu reino não estivesse enfrentando a maior crise do milênio.
"Eu encontrei uma solução para o nosso mais recente problema de escassez de almas!", prosseguiu o Chefe orgulhosamente. Leo olhou de soslaio para Nico, que deu de ombros, como se dissesse Vamos ver até onde ele vai com isso. "Como todos bem sabem, as pessoas vivas com inclinação para o mal estão diminuindo. E, uma vez que o Céu é inalcançável para nós, corromper ou sequestrar almas já mortas está fora de cogitação. O que, se continuasse, levaria a nossa morte certa e dolorosa quando O Dia chegasse. Quer dizer, a morte de vocês. Mas, não temam!"
Ele abriu um sorriso largo e enlouquecido, e Leo começou a reconsiderar se aquela solução era realmente boa notícia.
"A solução que eu pensei — eu, definitivamente não minha secretária Anna — é que temos que corromper as almas boas na Terra!"
O Chefe abriu os braços, como se esperando uma salva de palmas e comemorações, talvez um "Você é brilhante, Chefe!", mas nada disso veio. Houve somente silencio, e Leo encontrou-se encarando o mais velho em choque. A Terra?!
"Bem", disse o Chefe, parecendo decepcionado pela falta de reação. "É uma boa ideia. Conseguimos a lista dos humanos favoritos daqueles caretas, e mandaremos dez demônios para a Terra, com a intenção de corrompê-los."
"Você vai mandar demônios pra a Terra?!"
As palavras de Leo ecoaram solitárias nas paredes apedrejadas, atraindo todos os olhares para si. Uh-oh, pensou o demônio desesperadamente ao perceber que falara aquilo em voz alta. Pode ver Piper anuir a cabeça em exasperação, como se não pudesse acreditar que Leo fosse tão burro. O Chefe semicerrou os olhos na direção dele, o cabelo azul vagarosamente escurecendo para um tom avermelhado.
"Sim, eu vou", disse ele friamente, mas, para o gigantesco alívio de Leo, não o incinerou ou nada do tipo. "Cada demônio será designado para um humano em especial, e eu darei um pequeno resumo sobre a vida de tal humano."
Seus olhos flamejantes encontraram os castanhos de Leo, e o demônio não pôde evitar de engolir em seco.
"Começando por você."
VOCÊ ESTÁ LENDO
Between Angels and Demons
FanfictionOs demônios estavam passando por um momento difícil. Com a chegada dos tempos modernos e, com eles, a súbita necessidade de tornar-se alguém melhor, o Céu enchia-se gradualmente, enquanto o Inferno nunca estivera mais vazio. Se continuassem assim, o...