Parte dois: ocorrido trágico

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Agora, porém, cabe demasiado bem uma citação. Por volta de dez anos atrás, podemos imaginar bastante fácil o que será aqui relatado. Joel afirma que a sequência de fato é totalmente válida, se avaliado com coerência.

Um admirável dia na Feliz Espaço, Maria e Joel corriam como loucos um atrás do outro em uma lagoa. Ela formava uma espécie de ave, talvez um pato, já que o dono, naquela época, era assumidamente um fã da espécie. Joel conta que teve de jogar fora mais de trinta cabeças de patos diferentes que havia espalhado na casa afora quando ele a comprou.

Muitas outras crianças brincavam ali vez ou outra. Mas nunca longe demais dos pais. Diziam que o jardineiro, que ficava sempre tão longe entre emaranhados de árvores, sequestrou uma criança e a estuprou. Mas nada foi provado e o homem ainda manteve seu trabalho intacto.

A criança foi encontrada um dia depois na floresta, mas nunca mais teve coragem de voltar naquele lugar, tampouco olhava para a cara do jardineiro acusado.

Uma das mães apareceu enquanto Maria e Joel corriam brincando de pique-pega com as outras crianças:

— O almoço foi servido — anunciou, e logo as crianças correram para lavar as mãos e comer.

Todas se sentaram com seus respectivos pais, avós ou seja lá o que eram um do outro. Maria e Joel se sentaram com sua mãe. E apenas isso. O pai, bem... a mãe teve uma juventude um tanto quanto... perdida, como seriam as palavras do próprio Leonel Joel.

O dono do local, como descobriram com o decorrer das férias visitando-o, convocou a todos um louvor rotineiro a Deus antes de se alimentarem, em agradecimento ao alimento. O fizeram, Joel com bastante falta de interesse, porém. Maria sorria e parecia aproveitar o momento. Ela tinha o costume de jogar os cabelos que caíam como cascatas negras dos ombros para as costas na hora de dizer "amém". Depois dava aquele sorriso tímido por falta de um dente de leite, colocava o guardanapo por sobre as coxas e comia como se não houvesse amanhã. Joel assemelhava-se tanto com a irmã que muitos perguntavam se eram gêmeos. A cor parda, rosto arredondado e sempre feliz, olhos grandes e castanhos...

— Azeitonas! — comemorou Maria quando viu o banquete preparado para aquele dia. Joel relata que a irmã adora o fruto, e a comia com demasiado entusiasma.

Uma das crianças sofria de síndrome de Down, e ela brincava com a refeição feito um brinquedo enquanto a comia. Não que tivesse mal na coisa, mas ela era sempre tão ignorada. Joel, aos seus dez anos, se perguntava como era se relacionar com uma criança que sofria desta anomalia genética... Não é algo que acrescente, mas de fato é algo que deve ser relatado.

Depois disso não há muito a ser dito. Há não ser no próximo dia, onde o título deste é bastante influente. Ficou relatado nos jornais falantes como Ocorrido Trágico, e era exatamente este qual Leonel Joel por pouco escolhera pular quando seus olhos se encheram de lágrimas a esperar sua mãe no que seria uma espécie de varanda.

Após o almoço em família (onde muitas eram acostumadas umas com as outras devido à repetição do evento), Joel voltava da floresta onde habitava o tão estereotipado jardineiro. Uma das crianças o desafiara.

"Você vai para dentro da floresta ou terá que dar um beijo na Jocelyn", Marcos reforçou a aposta com Joel. Jocelyn era a criança que sofria de síndrome de Down. Não que Joel não a quisesse, mas é que ele tinha uma certa vergonha de assumir seus desejos. Ele achava lindo aquele sorriso tímido e perdido, vez grosso, vez agressivo.

A floresta era algo realmente sombrio, ou talvez fosse o medo quem a tornasse tão... estranha. O jardineiro chamava-se Leopoldino, descobriu Joel após conversar com ele e chegar a uma conclusão de que o homem não era nenhum estuprador.

Mas quem, então, era Leopoldino? E o motivo de sua isolação?

Isso muitos queriam saber, sim. Inclusive eu quando fiz as mesmas questões para o prórpio. Enfim, segundo Leonel Joel, Leopoldino poderia ser descrito com cento e dez palavras:

"Leopoldino era branco e sozinho, assemelhava-se à tristeza, mas na verdade apenas um ser incompreendido. Sonhador e questionador, tímido para o público, porém sofria com alguma espécie de narcisismo 'encubado'. Ele cobrava demais de si, mas sempre frustrado por não consegui-lo. Sua postura demonstrava a sua própria decepção: um homem alto, porém curvado sobre si. Os calos cresciam nas mãos e estouravam, o estômago era uma criatura que emergia em suas entranhas, gritante. A calvície reforçava sua feiura, assim como o nariz e orelhas. Mas o que realmente o deixava conhecido como o jardineiro e sua exuberância eram seus olhos castanhos. Estes sempre estavam a procura de algo, de alguém."

Equando o mesmo foi acusado do desaparecimento de Maria uma queda da lua apósaquele almoço, Joel ficou a favor do réu, mesmo que em seu silêncio.    

Joel e MariaOnde histórias criam vida. Descubra agora