Parte três: que na verdade

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Dando procedência ao capítulo predecessor, este retrata algum espaço tempo anterior ao que Joel recebe sua infeliz mãe em sua Solidão. Da visão do jardineiro, e que o mesmo descanse em paz.

— Veja só se pode, Leopoldino — disse o Sr. Arnaldo, dono da Feliz Espaço, após o jardineiro concordar em dizer para a imprensa que foi ele quem encontrou a coisa e nomear-se dono do local. — Uma calamidade, calúnia. Difamação! Eu o aconselho até mesmo processar quem o acusa de tê-lo capturado. É um abuso contra nós. Sabemos que você não o fez, a criança se perdeu por si só.

Leopoldino apenas manteve-se curvado sobre si, apoiado em uma pá de jardinagem. Pelo que conheci dele, não teria nada a dizer sobre...

— Veja só, Leopoldino — continuou o roliço Sr. Arnaldo. — Ora, essa noite quero que durma na minha casa. Jamais demitiria alguém como você. Sempre prestou serviços excelentes, aposto que não encontraria outro com o seu valor, jamais. Marcelo, venha cá — chamou seu companheiro. — O que me diz a respeito das acusações com nosso jardineiro?

Marcelo era uma coisinha pequena e morena, porém coberto de pelos. Barba grande, barrigudo, cabelos bagunçados, sobrancelhas unidas e um bigode em forma de U nas pontas.

— Eu não sei. Leopoldino, você o fez?

Conhecendo nosso réu de outrora, posso afirmar que ele negou.

— Aceitou o pedido do Arnaldo a respeito da coisa do Lago-Pato?

Ele concordou com a cabeça desta vez.

— Então não tenho nada para dizer — concluiu o rancoroso Marcelo.

A mãe do Sr. Arnaldo, dona Amélia, também estava na sala da casa hoje nomeada Solidão. Um quadrado emparedado de madeira e arandelas rústicas dentre janelas de vidro cilíndricas. Embora a tecnologia fosse algo quase nomeado passado, a Feliz Espaço ganhava seu lugar exatamente por isso: em um mundo onde a robótica por pouco não substitui a humanidade, quem usa a madeira é rei. Ao menos era o lema ridículo estampado no logo da fazenda. Uma madeira crepitava na lareira, triste como a melodia que passava em uma vitrola. Ah, essa vitrola tem uma história engraçada por cima, ao menos para mim... porém não convém contá-la. A música era uma adoração a um Deus que muitos hoje não creem mais. O Deus dos homens, que há algum tempo vem se tornado cada vez mais esquecido. Lamentável, diria.

— Vocês me enojam — disse dona Amélia, completamente engolida pelo escárnio. — Deus não agrada dessas coisas, meu filho. Toma tipo, vá orar e pedir perdão.

— Mamãe... de novo não — Sr. Arnaldo a repreendeu.

— Você e essa sua bola de pelos ficam aí nesse seu romancezinho amaldiçoado e se esquecem da palavra de Deus, eu realmente não consigo entender onde foi que errei...

— Mamãe, é sério, tenho problemas reais acontecendo aqui... Ora, Leopoldino, de verdade, quero que fique conosco essa noite para o jantar.

A mãe interveio outra vez:

— Querendo levar o rapaz para o mau caminho. Deus salve meu filho.

— Tal como salvou a América — retrucou Marcelo e depois saiu mancando da perna direita para longe.

Segundo Leopoldino, Marcelo era um soldado do exército americano quando houve a guerra que devastou toda a América do Norte e a perna do coitado. "Deus salve a América" foi o que mais ouviram naquele tempo, contudo... "Tudo em seu tempo e em seu por que", dizia o jardineiro para si mesmo sempre que se lembrava dessa triste história. E ainda reforçava: suponhamos que Deus escreva um livro, tal como qualquer outro escritor... Ele terá que descrever cenas boas e ruins, tal como qualquer outro escritor... Ele terá que alimentar e dar fome, vida e morte, amor e ódio, terá que dar uma história, tal como qualquer outro escritor...

Joel e MariaOnde histórias criam vida. Descubra agora