Capítulo 1

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  Paulistano lá da zona leste, era doido esse Ramiro. Nem sei o porquê de ele ter vindo para Curitiba. Não era "inocente de tudo", sabe? Ele já havia estado preso anteriormente. Morava numa quitinete no bairro do Portão. Trabalhava como digitador. Ganhava pouco, mas o suficiente para manter a moradia. Esse mulato magro de 30 anos namorava a Belinha, uma gatinha, viu?



Tudo estava indo muito bem até o dia em que o casal de namorados foi abordado pela provocação de um cara folgado:



— Ô Gostosa! Quanta saúde, hein? Cachorra! Você nunca mais me deu bola, hein? Ô Belinha, a gente já curtiu junto ... Nem fala com os vizinhos ... O que tá rolando ?



Ramiro percebeu que o sujeito tinha uma arma em suas costas, pois quando o mesmo começou a insultar, ele estava de perfil, possibilitando ser percebida a presença de um revólver em suas costas por trás da jaqueta. Era perceptível também que o indivíduo estava ligeiramente alterado por algum tipo de bebida alcoólica.



"Esse desgraçado é atrevido só porque tá armado! Ele vai pagar..." Pensou.



Belinha conhecia o "sem-futuro". Era irmão de um "dono de boca de fumo" (traficante local). Ela tinha "ficado" com ele anos atrás.



Belinha começou a discutir:



— Seu idiota! Pau-no-cu! Só fiquei com você uma vez, e era quando eu tinha uns quinze anos! Babaca! Não quero nada com você, seu monte de merda!



Enquanto os dois discutiam, Ramiro deu um bote rápido na arma do babaca e em seguida deu um direto de direita no queixo do "engraçadinho". O gaiato foi ao chão, perplexo, olhou para Ramiro empunhando o revólver de calibre 38 que tinha sido capturado. Após uma surra homérica, o fiel namorado de Belinha tirou as balas do tambor, jogou a arma para um lado da rua e a munição para outro. Depois daquele espetáculo de baixo nível, Belinha ficou desesperada e gritou:



— Ramiro! Esse cara que você bateu é irmão do Toninho, o traficante lá da esquina! A gangue deles vai te matar! A única alternativa era fugir. Belinha tinha implorado para que ele fosse embora. Ele não quis se humilhar e pedir dinheiro para ela. A namorada não sabia que o rapaz que ela amava estava sem nenhum.



A sensação era de corrosão por dentro. Era como se ele estivesse desertando de uma guerra, mas pela garota ele fazia tudo.



O rapaz foi parar na rodoviária de Curitiba com uma intenção: ir embora. Como ir para São Paulo sem um tostão sequer?



Na rodoviária ele foi para o setor interestadual. Viu uma oportunidade: uma lanchonete. Duas moças trabalhavam lá. Uma delas saiu enquanto a outra ficou no caixa e atendendo o público ao mesmo tempo.



"É agora!", pensou Ramiro. Como não havia ninguém querendo comprar, ele logo pediu:



— Me vê aquele salgadinho...



— Esse aqui? – indagou a moça.



— Não. Aquele lá no fundo...



— Ah, tá...



Quando a moça foi para o fundo do estabelecimento pegar o requerido alimento, Ramiro abriu furtivamente a gaveta do dinheiro e pegou uma quantia equivalente a um salário mínimo na época.



A atendente trouxe a encomenda e Ramiro perguntou:



— Quanto é?



— Dois reais.



A compra foi paga com o dinheiro exato, não necessitando de troco, saiu sem levantar suspeita.



Ramiro estava na fila do guichê para comprar passagem rumo a São Paulo, quando foi abordado por dois policiais militares. O policial mais velho foi logo falando alto:



— Aí magrão! Acompanha "nóis" aí!



O Suspeito em questão não demonstrou nervosismo. Os policiais o revistaram e acharam o maço de dinheiro envolto num elástico. Na frente dos demais freqüentadores da rodoviária, os policiais tentaram transparecer seriedade. Satisfeitos com a prisão, demonstraram cavalheirismo ao devolver o dinheiro para a moça da lanchonete.



Se forem seguidos os padrões da lei, um condutor de prisão não pode devolver o dinheiro ou objeto à vítima imediatamente, pois é a prova do processo. Esse tipo de gentileza sempre denota erro na função policial. Sob este ponto de vista Ramiro percebeu algo nítido através desta ação: olhares e tons de voz mostraram que um dos policiais estava paquerando a funcionária da lanchonete. O PM paquerador falou em tom orgulhoso e exibido na frente das funcionárias e espectadores:



— É magrão... A mulher da limpeza viu você "ganhando" a grana! Acompanha "nóis" aí. Você tá preso.



Os PMs levaram o recém-preso para a sala da base da Polícia Militar no segundo andar da Rodoviária. Ao fechar a porta da sala, os policiais começaram a espancar o preso. Este, com as mãos algemadas para trás, conseguiu acertar um chute no rádio de comunicação da polícia. O rádio caiu no chão espatifado em vários pedaços. O policial mais velho esbravejou:



— Desgraçado! Ladrãozinho filho da puta!



Os dois policiais continuaram a espancar o cativo, desta vez com mais raiva. O réu Ramiro foi conduzido ao Distrito Policial situado mais próximo do local da ocorrência, como está previsto no Código Penal Brasileiro. Lá o escrivão perguntou nome, endereço etc. Ramiro negou-se a responder as perguntas. Quando os policiais da delegacia insistiram, ele limitou-se a dizer:



— Vocês já têm meus documentos. Não vou responder nem assinar nada.



O Escrivão, furioso, gritou:



— O quê?! Você não vai assinar a nota de culpa?!



Um policial desferiu um tapa no pescoço dele. Ramiro, num ato de rebeldia, avançou na direção do escrivão e quebrou o computador e a impressora. Após uma baita surra o réu foi conduzido ao cárcere daquela delegacia.



Os policiais jogaram o corpo quase desfalecido de Ramiro junto aos outros presos. Um dos policiais, para produzir intriga, gritou:



— Esse cara aí é estuprador, cagüeta (delator), vocês não vão deixar barato, vão?



Quando o policial fechou a grade, um dos presos perguntou:



— E daí maluco?! Qual é a sua? Pelo jeito você deve, né?



Ramiro respondeu calmo e seguro de si:



— Olha, se vocês quiserem me bater, tudo bem, mas vocês preferem acreditar na polícia ou no ladrão? Por acaso eu trouxe alguém preso comigo? Mano, acabei de quebrar o computador do escrivão, apanhei feito "gente grande"!



Um preso mais velho comentou com sabedoria:



— Olha, o maluco tá certo. A gente não tem que abraçar idéia de verme, tá ligado? Na minha vida já vi muito inocente apanhar porque a polícia "botou pilha".



Os presos não espancaram Ramiro. Perceberam que era mais uma vítima da covardia do Estado coator. Vinte e poucas horas mais tarde, o recém presidiário foi conduzido ao centro de triagem. Esse órgão tem por finalidade distribuir presos para presídios do departamento penitenciário do estado.


Um Réu DiferenteOnde histórias criam vida. Descubra agora