V
Três meses se passaram e finalmente chegou o dia de Ramiro ir ao fórum: ele teria audiência com o juiz na vara criminal. Lino aconselhou:
— Olha lá, Ramiro, juízo, hein? Vai lá, responde às perguntas do juiz... A tua "bronca" é pequena, viu? É papo de liberdade, valeu?
Ramiro ficou em silêncio como de costume.
Minutos se passaram e os presos de uniforme laranjado ouviram no alto-falante:
— Ramiro dos Santos, Porta Principal.
A porta abriu, fazendo um ranger típico de som de motor elétrico e engrenagens de aço. Ramiro saiu caminhando devagar até a porta de segurança. Foi revistado, algemado e conduzido até o furgão desumano e desconfortável. Duas horas mais tarde estava na frente do fórum.
No fórum outra ilegalidade do Estado repressor: uma cela superlotada onde os presos não tinham onde sentar. Eram presos de diferentes penitenciárias que conversavam alto, comparando os infernos dos presídios. Ramiro encontrou um ex-colega de cadeia, quando tinha estado preso em Araraquara no estado de São Paulo por furto. Como de costume, conversou o mínimo.
Após mais de duas horas esperando em pé, foi algemado até a sala do juiz. O interrogado se manteve calado, sentado numa cadeira com rodinhas.
— Profissão? Data de nascimento?
Ramiro continuou calado. O juiz intuitivamente percebeu que não se tratava de um réu comum. Pensou e, após alguns segundos, disse:
— Escute, Sr. Ramiro dos Santos, vamos, desabafe...
— Fui torturado diversas vezes. Vossa Excelência deposita fé nas palavras de torturadores intitulados policiais... Não há "rés furtiva" (objeto ou dinheiro apreendido como prova num processo criminal), como pode o Poder Judiciário ter aceitado uma denúncia sem cabimento desse tipo? – falou Ramiro em tom de desespero.
— Um momento, Sr. Ramiro... Há sim "rés furtiva" o Sr. Furtou 355 reais da lanchonete na rodoviária de Curitiba. — retrucou o juiz.
— Onde está esse dinheiro?! Mostre-me! Se Vossa Excelência apóia torturadores mentirosos, Vossa Excelência é sim co-autor de déspotas monstruosos que cometem abusos de autoridade!
O juiz ficou vermelho de raiva e ao mesmo tempo espantado com um preso falando português correto, algo raro no universo brasileiro. O magistrado respirou fundo, olhou para o teto e disse:
— Prossiga, Sr. Ramiro.
— Alguém ficou sem dinheiro? Alguém sofreu prejuízo? A única pessoa que saiu perdendo nessa história toda fui eu! Sofri tortura, humilhação! Recuso-me a assinar qualquer papel. Já se passaram meses e continuo a não assinar nada! Tenho nojo de tudo que vem do governo! Nojo!
O juiz a essa altura saiu do sério. Ordenou à sua escrivã:
— Dona Clotilde, por favor, digite aí uma liberdade provisória para o Sr. Ramiro. Chega de choradeira!
Enquanto a funcionária digitava, o juiz prosseguiu:
— É, Sr. Ramiro... O Senhor disse que não assinava nenhum papel... E a sua liberdade? O seu alvará de soltura? O Senhor vai assinar?
— Não. Não assino nada! — disse o réu de maneira categórica.
O juiz ficou abismado e atônito:
— Ô rapaz! É a sua liberdade! Basta assinar que você vai embora! Você quer voltar para a prisão?
Ramiro continuou inflexível:
— Eu não assinarei nenhum papel.
O juiz perdeu a postura e o decoro jurídico:
— Ah, então você vai voltar pra cadeia! Você é um louco! Tirem esse idiota daqui! Levem ele pra Casa de Custódia! Lá é o lugar dele! Que apodreça na prisão!
O réu e os policiais sairam da sala. O juiz botou a mão no queixo, fez uma careta de desaprovação e comentou:
— Dona Clotilde, em mais de vinte anos de magistratura nunca vi um cara jogar a liberdade fora desse jeito! Mas calma... Esse carinha ainda vai assinar o papel... Ninguém é tão doido desse jeito... Ah, a Senhora, vai ver, Dona Clotilde, A Senhora vai ver...
Quando Ramiro chegou na "CCC" Lino ficou horrorisado com a notícia:
— Meu, você jogou a liberdade fora!!! Ô meu, você não tem juízo, Ramiro?!!
Entre os presos e os agentes penitenciários, não se falava outra coisa. Estavam todos incrédulos com a loucura dele.
Três semanas depois, o juiz expediu o alvará de soltura. O réu deveria assinar o documento para sair da prisão. Os agentes se dirigiram ao Ramiro com surpreendente educação:
— Olha Ramiro... É a sua liberdade. Você já causou muita confusão. É só assinar!
Lino gritou:
— Vai lá, Ramiro! Mano, assine, é a sua liberdade!! Assine! Viva!!
Ramiro pegou a caneta, esboçou um movimento de quem iria assinar e subitamente rasgou o alvará de soltura!
— Eu não assino nada ! — disse secamente.
Todos ficaram boquiabertos. O réu preso tinha rasgado sua liberdade. Lino ficou inconformado, olhou para o teto e gritou:
— Oh meu Deus! Por que é que o Senhor não manda um documento desses pra eu assinar?! Ramiro: você é doido! Depois dessa eu preciso tomar um calmante.
Algumas semanas passaram e foi ouvida a seguinte frase no alto-falante:
— Ramiro dos Santos, porta principal!
Lino deu um tapinha no ombro de Ramiro e falou:
— Mano, eu acho que "cantou" o fórum... Juízo, hein?
O juiz titular da Vara Criminal chamou o réu Ramiro dos Santos para algo meramente lúdico: dois procuradores e um desembargador queriam conhecer "o maluco que rasgou o alvará de soltura".
O juiz, após conversar com Ramiro, finalizou:
— O processo foi arquivado por falta de materialidade, ou seja, por ausência de indícios probatórios consistentes. O Senhor está livre. Não se preocupe, não precisa assinar nada. A vara criminal irá conceder uma exceção e o Senhor receberá uma passagem de ida para São Paulo. Aqui está. Juízo, hein?
Ramiro mal podia acreditar que tinha em suas mãos uma passagem para sua cidade. Voltou para a Casa de Custódia para pegar os pertences pessoais. Os agentes não permitiram que ele se despedisse dos amigos. Foi de carona numa viatura policial para a rodoviária e, quando o ônibus partiu, escorreu-lhe uma lágrima ao lembrar-se de Belinha. Nunca mais ninguém teve notícias dele. E sabe o Lino? Ele é irmão do escritor desse conto. Todos os meses o visitava naquele presídio medonho. Por isso fiquei sabendo desse fato. Conheci Belinha, e ela me pediu para tentar localizar Ramiro, mas fui frustrado no intento. Mudei os nomes e alguns acontecimentos por respeito à memória das pessoas envolvidas.
FIM
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Um Réu Diferente
AksiUm jovem é jurado de morte por uma gangue de traficantes. Ele precisa urgentemente sair da cidade, mas não tem dinheiro para comprar passagem. Na rodoviária é flagrado tentando furtar dinheiro de uma lanchonete. O réu é conduzido ao inferno do cárce...