TRÊS

511 55 36
                                    

Durante a primavera e verão costuma ocorrer muita chuva rápida na Florida. O que provoca essas chuvas repentinas e rápidas nessa época do ano são as correntes de ar do Golfo do México e do Oceano Atlântico que colidem sobre a península, trazendo chuvas, vento e tempestades. É assim também, que se formam os tornados na região.

Hoje o dia estava quente e iluminado pela brecha de sol que relutava em aparecer entre as nuvens cinzentas. Enquanto atravessava a rua Jackson indo até a Newbrook ouço um trovão e olho para o céu; agora ele estava coberto de nuvens carregadas. Posso até dizer que senti uma pequena gota cair em minha pele. Aperto meus passos para que chegasse logo até biblioteca. Se a escola permitisse pegarmos livros emprestados e levar para casa eu não precisaria estar aqui. E se a professora de literatura não nos obrigasse a fazer um resumo de um livro de 750 páginas, eu também não estaria aqui.

Avisto o grande prédio de tijolos com a placa "Biblioteca estadual de Jacksonville", com um flamingo ao lado do nome. Um dos símbolos da Flórida é o Flamingo Americano (Phoenicopterus Ruber), uma ave com plumagem nos tons de rosa, pescoço comprido, pernas longas e bico encurvado, que medem entre 90 e 150 cm. Empurro a porta de vidro e todo o barulho das ruas é deixado para trás quando ela se fecha. Gosto do silêncio murmurante que é dentro da biblioteca. E como estava sempre fresca mesmo em dias quentes.

Era uma biblioteca velha e simples mas era bonita. Não tão bonita quanto a biblioteca George Peabody que conheci quando estava em Baltimore. O lugar parecia um palácio, com varandas e uma claraboia a 18,6 metros de altura, foi a arquitetura mais linda que já vi. Havia mais de 300 mil livros pela biblioteca, é claro que eu não li o título de todos mas eram exemplares de importantes áreas de conhecimento, como arte, arqueologia, história britânica e americana, clássicos gregos e latinos, história da ciência, geografia, além de livros sobre exploração e viagens e uma grande coleção de mapas.

Eu sempre gostei de mapas. Tenho um onde marco todos os lugares onde já morei ou já visitei.

No inverno de 1974 tive o prazer de conhecer a maior biblioteca do mundo; The British Library em Londres, na Inglaterra. Nela havia mais de 170 milhões de livros, além de mapas, jornais, partituras, patentes, manuscritos e selos. O prédio tem um espaço dedicado à leitura com capacidade para 1.200 leitores. São 625 km de prateleiras que crescem 12 km a cada ano — segundo o guia turístico que me contou esses detalhes. O prédio guarda raridades, como manuscritos de Shakespeare e Jane Austen, desenhos de Leonardo da Vinci, partituras de Mozart e Beethoven, letras de sucessos dos Beatles escritas à mão por Lennon e McCartney — essa foi a parte mais incrível. E manuscritos de Freud, cartas de Darwin, gravação do discurso experimental de Nelson Mandela, e por aí vai. É um lugar inspirador.

Ando por corredores olhando prateleiras em busca do maldito livro. A grande maioria eram antigos amarelados e desgastados. Olho toda a coleção de livros de Shakespeare, Baudelaire e Edgar Allan Poe. E nada. Acabo indo para outro corredor e nele encontro uma coletânea de livros sobre a segunda guerra mundial. Imediatamente lembro do meu pai, ele adorava contar as histórias que meu avô o contava quando criança sobre como foi servir o exército dos Estados unidos. Pego um deles, folheio, olho as imagens, leio as partes pequenas, fiz isso por mais ou menos uns 10 minutos. Coloquei o livro de volta a estante e quando estava prestes a ir até a bibliotecária e perguntar a ela se podia me ajudar, a porta de entrada se abre.

Meu coração pareceu querer pular do peito. Anastasia entra cumprimentando os funcionários distribuindo seu sorriso para todos. Ela andava em minha direção mas ainda não tinha me visto. Procuro rapidamente por um livro qualquer só para fingir estar distraido lendo, e parecer intelectual. Com o livro aberto em mãos sem nem ter visto a capa finjo estar concentrado. Sinto que ela me viu, e continuou em frente. Fecho o livro e leio o nome: "Guia da puberdade, saiba como passar por essa fase tão difícil." Fecho os olhos pressionando as pálpebras e aperto os lábios. Você é um gênio, Kurt.

Anastasia olha para trás e eu tive a certeza de que ela me viu com aquele livro estúpido na mão. Naquele breve momento infinito de tempo a observei com admiração; o xadrez intenso da saia, o balanço do cabelo ruivo nas costas do suéter amarelo, a pele clara, um pequeno hematoma atrás de uma das panturrilhas, os cadarços amarrados de forma desleixada que balançavam de um lado para o outro.

Por fim ela some no corredor que ligava o prédio antigo à biblioteca das crianças. Me deixando intrigado o bastante para segui-la. Alguns minutos depois largo o livro para trás e sigo o mesmo caminho, atravesso a divisão dos prédios e paro na entrada da biblioteca infantil. Era um pouco mais barulhenta mesmo com cartazes dizendo para fazer silêncio e as advertências dos adultos.

Fico parado na porta de vidro e vejo Anastasia sentada em um círculo formado por crianças. Durante sua leitura ela ganhava atenção dos pequeninos que mudavam de expressão toda vez que algo chocante acontecia na história. Os olhinhos se arregalaram quando ela mudou o tom de sua voz para mais grave; interpretando o personagem do monstro malvado que perseguia criancinhas.

Seus olhos vez ou outra deixavam o livro para encarar os rostos em sua frente, depois voltava. Os minutos pareceram voar, assim como folhas de árvores voavam lá fora com o vento acompanhado da chuva. Quando a hora da leitura acabou as crianças comemoraram alegres pelo final feliz da história. Olho para os pestinhas que saíram correndo e quando volto a olhar Anastasia, ela me olhava. E gentilmente ela sorriu. A vejo levantar e vir até onde eu estava, não esperava que ela fosse dizer algo. Mas ela diz:

— Você não parece ser do tipo que gosta de histórias infantis.

Hesito por um momento antes de responder.

— Eu gosto de como você as conta.

Observo seu silêncio, havia muita cor nas bochechas dela agora; um rubor natural no alto das maçãs do rosto. Assim como as estrelas ficam visíveis durante a noite suas sardas agora tinham mais destaque.

Seus olhos naquela pouca luz de biblioteca me lembraram Netuno, eram tão azuis quanto. Suas sardas eram como poeira estelar, se espalhavam por debaixo dos olhos, no nariz, e pelos seus braços. Com seu suéter puxado para cima até os cotovelos, vi pequenos vestígios de tinta em sua pele, sinal de que ela estava pintando.

— Não vai levar o livro sobre a puberdade?

— O quê? Não — rio constrangido. — Eu estava com o livro errado - me xingo mentalmente por ter inventado essa mentira. — Preciso achar um livro pra um trabalho de literatura.

— Eu adoraria te ajudar a encontrá-lo. Eu conheço essa biblioteca como a palma da minha mão. Mas eu realmente preciso ir embora agora — olha para a uma janela próxima vendo que a chuva havia parado.

— Sem problemas, sério. Tudo bem.

Ela retorce os lábios e me olha como se tivesse uma idéia em mente.

— Qual o nome do livro?

Quando falei o nome do livro para Anastasia ela me disse o corredor e a prateleira onde eu poderia encontrá-lo. Confesso que isso me impressionou. Antes que ela fosse embora, a chamei pelo nome. Ela se vira e eu digo:

— É muito legal o que você faz. Sabe, ler para as crianças.

Ela olhou para baixo, e voltou a me encarar, havia um certo brilho em seus olhos.

— Obrigada, Kurt.

Quando fui procurar pelo livro o encontrei exatamente onde ela havia dito que estaria.

Naquele momento pensei que talvez ela só me visse como seu colega de classe das aulas de artes e geografia — o que é injusto ter só duas aulas com ela. E que a maneira como ela me via era totalmente diferente da que eu a vejo. E talvez ela só falasse comigo por isso, por ser essa garota educada e gentil com todos. Mesmo sem conhecê-los.

*

ANASTASIA 🌻 Finn Wolfhard/Sadie SinkOnde histórias criam vida. Descubra agora