Berlim mudou muito em um ano e agradeço a tecnologia, mas às vezes ela é incomoda.
Acordo já de tarde, beirando as quatro, mas o frio lá fora é absurdo. Procuro meu casaco de pele mais chique e saio com meus curtos cabelos loiros para comprar algo para comer.
Evito os metalheads no caminho, pois eles são uma desagradável herança dessa década que se vai. A música pop dos EUA -droga não acredito que vou dizer isso- é muito melhor que esse rock adolescente que temos aqui. Como se couro e cabelos duros para cima não fossem ridículos o suficiente.
Acabo levando mais tempo que o necessário, pois o laberkopp que trabalha no restaurante me atendeu por último. Por isso desgosto sair como Russell. Nicola sempre consegue tudo com muita rapidez e graça, colocando homens e mulheres aos seus pés. Mas infelizmente é uma qualidade dela e não minha. Foi esse o motivo do meu último namorado ter terminado comigo. Ele disse: “você não pode ser duas pessoas”, mas não é como se eu quisesse.
Não é fácil se sentir poderosa sem uma peruca e um belo vestido de látex colorido.
A rua de pedra é fria e as pessoas parecem apressadas. É difícil vê-las desse jeito. Sorridentes, sem medo e bem vestidas. Pouco mais de um ano atrás, todos estavam sujos de fuligem e sujeira. Havia prédios destruídos e gente morta pela rua. Eu só tinha dezessete anos, mas fui obrigado a servir a minha Berlim. Pensava, se Pat Benatar conseguiu, eu também conseguiria. Só que aqui o meu campo de batalha não era sobre amor.
Fiquei tão aterrorizado quando tudo acabou que o médico da minha junta militar - que era um fã ávido de Madonna e por isso se tornou meu amigo - disse que eu poderia canalizar meu medo em algo forte e poderoso. Como ele fazia se vestindo de noiva e cantando Like a Virgin em sua casa. E assim, Nicola Rans Fiedler surgiu.
Claro, eu também descontava nos malditos capangas que Hanserfforv enviava.
Era um saumensch que achava que tinha poder só porque tomava conta do trafico de drogas do bairro, mas morre medo da polícia e vive viajando para o interior pra se esconder de batidas em seu galpão. Quando volta, com raiva pelo acontecido, ele cai com tudo pra cima de mim.
Como os verfluchtes de ontem.
Eu me sinto mal pelo filho dele, mas eu não o matei. Só o fiz ficar no hospital por um tempo. Aí a guerra explodiu e ele foi mandado para o campo de batalha. Não é todo mundo que consegue sobreviver a isso. Depois que voltei, Hanserfforv decidiu que a culpa era minha e quando não gasta o dinheiro com putas e drogas, gasta tentando me matar.
Apressei-me para ir a meu apartamento para fazer o juramento de Não Guerra obrigatório das seis e também me preparar para o meu dia de folga. Domingos eram sagrados. Significavam casas noturnas coloridas, com música eletrônica ecoando alto, banheiros pichados onde homens se pegam sob as luzes vermelhas do local.
Nada é melhor que isso.
Coloquei minha peruca mais cara e ajeitei bem minha silhueta, pois queria arrancar todos os suspiros e olhares hoje. Coloquei minhas botas calças de costume, que são quase minha marca registrada e fui ao encontro do médico mais gay do mundo.
“E ai Kruschev!” digo ao encontra-lo do lado de fora.
“Was für eine eseskälte!” ele respondeu se abraçando.
“o frio é nosso melhor amigo”
Ele disse um palavrão baixinho e então entramos para começar nossa noite de pura diversão.

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Nicola Rans Fiedler
FantasyUma drag queen precisa lutar para continuar viva numa realidade alternativa de Berlim pós queda do muro. Em meio a muito rock, pop e baladas neon, ela descobre que seu maior inimigo, também pode ser seu maior amante.