Naquela manhã, as aulas se arrastaram. Sem Trevor para me manter em alerta, a voz da professora parecia estar me embalando gentilmente, fazendo meus olhos pesarem e minha cabeça pender para frente e para trás enquanto, na minha frente, Josh dormia tranquilamente, debruçado em sua mesa, sem nunca ter aberto a mochila. E, por isso, sobreviver ao fim das aulas havia sido um alívio e chegar ao Café, uma grande vitória.
Eu pretendia passar a noite no sofá de Amélia ou na biblioteca, onde poderia pesquisar sobre pinguins e curiosidades inúteis. Independente do que fosse, eu ficaria feliz em não voltar para casa.
No Café, Amélia deixou seu escritório no segundo em que passei pela porta e, vindo ao meu encontro, tirou a mochila dos meus ombros.
— A noite foi boa, Lyssa?
Embora a curiosidade genuína de Mélie fosse bem-vinda, a pergunta apenas me fez encolher e suspirar.
— Foi péssima, Mélie. — Resmunguei e, com ela me acompanhando, segui até o outro lado do balcão.
— Como assim, querida? — Indagou, pendurando minha mochila em um dos grampos da porta. — Você pode ir para casa, se quiser. Quartas são tranquilas, você sabe. — Ofereceu, apontando para o lugar vazio.
Sacudi a cabeça, negando.
— Na verdade, um dos motivos da minha noite péssima provavelmente está na nossa cozinha agora. Assando bolos e tentando recuperar o tempo perdido. — Esclareci, sorrindo ao começar o trabalho de juntar meus cabelos em um rabo alto.
Arfando, Amélia me ofereceu um sorriso pesaroso. Um lembrete de que o desaparecimento de minha mãe não era segredo. Nada nesse maldito lugar era.
Talvez fosse por isso que doutor Stanley ainda estava agarrado ao meu tornozelo.
— Eu só preciso de um tempo para descobrir o que fazer. — Afirmei. Um tempo para mim mesma. — Posso dormir no seu sofá?
A pergunta fez com que o pesar desaparecesse e desse lugar ao confronto. Endireitando os ombros, Amélia cruzou os braços sobre o peito e se apoiou na pia de mármore que ficava pouco abaixo do balcão:
— Você não pode fugir dos seus problemas depois que eles te deram todo esse tempo. É hora de enfrentar.
Frustrada e desamparada, apertei minhas mãos em punho e puxei o ar com força. Não queria ter aquela conversa. Mélie podia estar certa, mas eu não me importava. Eu lutaria pelo direito de tomar minhas próprias decisões, como minha mãe havia feito. E não era uma vingança, tudo o que eu queria era pegar impulso e chegar à superfície para tomar fôlego.
— Eu fiz isso, você sabe. — Grunhi. — Eu tentei, sem fugir. Refiz cada um dos meus planos, mudei todas as rotas e, droga, Mélie, eu... Eu acho que refiz a minha vida sem ela.
Eu estava exausta, afinal, falar sobre minha família era como correr uma maratona sem qualquer preparação. Era chegar ao fim da linha e deixar o corpo ceder diante da dor e do esforço.
— Eu nunca fingi não existir. — Acrescentei em um sussurro.
Amélia suspirou e descruzou os braços, seus lábios se repuxando para baixo enquanto os olhos brilhavam com lágrimas que não cairiam.
— Alyssa... — ela passou as mãos por seu rosto, parecendo tão frustrada quanto eu — você passou todos esses anos inventando desculpas para impedir que a culpa recaísse sobre ela e agora que sua mãe achou a coragem para viver, quem está fugindo é você. — Expôs, estreitando seus olhos sobre mim.
Assim como Josh, Amélia assistiu de perto cada um dos meus passos depois que papai morreu. Eu havia passado noites em claro no seu sofá e havia trabalhado em todos os turnos possíveis, sem nunca realmente falar sobre o que estava acontecendo.
Ela nunca reclamava sobre isso, mas sempre me olhava como se quisesse ver além da dedicação obsessiva e, assim, conseguir prever o momento em que minha mente e corpo iam explodir.
Mas eu não iria.
Suspirando, ela se aproximou e apoiou as mãos em meus ombros:
— Você a entendeu por tanto tempo, por que não pode tentar ouvir o que ela tem a dizer?
Eu a olhei nos olhos e dei de ombros:
— Porque ontem à noite, quando eu a vi, finalmente me dei conta de que ela ignorou a minha existência. — Decalrei. — Eu realmente pensei que fosse, mas não sou grande o suficiente para ouvi-la falar sobre o luto como se eu também não o tivesse vivido.
Minha mãe não tinha ficado sozinha quando meu pai morreu, mas de repente, eu sim. E, pela primeira vez, reconheci o gosto amargo do rancor.
— Pode ficar na minha casa essa noite, mas enfrente isso pela manhã. — Ela decretou, apertando meu ombro antes de me soltar. — Você é a garota que bate de frente, Alyssa. Espero que não tenha esquecido.
Enquanto eu me mantive plantada na porta da cozinha, Amélia seguiu para o escritório e segundos depois ouvi a música baixa preencher o ambiente.
Enfrentar, eu vinha fazendo isso desde que meus problemas decidiram fazer fila para me chutar.
🥀
Depois de cobrir o turno de Ashley, que havia passado dois minutos tentando ser legal o suficiente para me convencer a fazer isso, fechei o Café e decidi que iria para casa. No entanto, faria um desvio para a biblioteca antes de enfrentar o quer que fosse.
Como de costume, as ruas de Losery estavam desertas. Josh e eu costumávamos dizer que a população da cidade podia ser classificada de duas formas: os que estavam desesperados para sair e aqueles que estavam felizes em se acomodar ou se esconder.
Assim que entrei na biblioteca fui confrontada pela visão das prateleiras repletas de possibilidades.
Havia um corredor onde eu sabia que encontraria o meu tipo de livro e eu praticamente corri para ele, tracejando a lombada de cada um dos livros até chegar no fim do corredor, onde me sentei e abandonei a mochila ao meu lado.
Na verdade, era bom ser outra pessoa e viver em outro universo. Fosse um anjo caído, o destino de um anjo, uma guerreira medieval, uma assassina, uma paciente terminal ou apenas uma garota enfrentando outros problemas e sobrevivendo a eles.
Como a arte, os livros conseguiam me transportar para longe da minha existência patética e deprimente. Eles me davam a esperança de um recomeço, de uma solução ou de um apocalipse.
Alcançando um livro, eu o abri na última página, correndo os olhos pela última frase antes de voltar ao início. Era um hábito ruim, do qual eu jamais abria mão. Eu tinha que saber em qual ponto o livro acabava, pois, jamais estava preparada para fins abruptos ou abertos.
Eu precisava de segurança. Não queria ultrapassar a linha amarela — o pré-determinado ponto de alerta — que havia estabelecido em minha vida, até porque, era isso o que ela significava para mim. Segurança.
— Você ainda é uma pequena trapaceira, Alyssa? — Justin, o dono do lugar, perguntou ao parar diante de mim.
As botas gastas e o tom divertido não permitiam dúvidas, mas ainda assim, ergui meus olhos para ele:
— Sim, a pior delas. — Garanti, sorrindo para ele.
— Medo de fins trágicos ou de ser pega em uma série? Sei que seu pai odiava séries. — Ele riu baixinho e eu acompanhei.
Ninguém falava sobre papai, exceto algumas poucas almas. Como Justin Ohire, seu antigo colega de escola.
— Não tenho medo dos fins trágicos e, particularmente, não sou a maior fã de séries, mas tenho evitado ambos ultimamente.
Justin suspirou e uniu seus lábios:
— Apenas se lembre que não podemos ler a última página da vida para descobrir se vamos querer continuar ou não. É preciso coragem, então, não fuja. — Aconselhou. — Apague as luzes quando sair e tenha uma boa noite, Alyssa.
Mas eu não estava fugindo, apenas seguindo em frente. Sempre em frente!
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Right Here
RomanceDepois de perder o pai, tudo que Alyssa Marckley quer, é terminar seu último no colégio e então sair de Losery, a cidade pequena e esquecida, na qual nasceu e cresceu. Sem grandes interesses, além do melhor amigo e de seu trabalho em um Café, a vida...