Prólogo

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Ainda era cinco da tarde, mas parecia que a noite já tinha pressa de reinar; a cada minuto que se passava um véu sombrio escurecia o céu, trazendo um clima frígido e soturno. A medida que o véu se expandia, pequenas estrelas despontavam aqui e acolá. Tímidas, porém plenamente conscientes do seu dever de prover luminosidade. Em terra, o exemplo das estrelas rapidamente começou a ser seguido; lampiões a base de gás que pendiam nos postes das ruas começaram a ser acendidos um a um, por um grupo de pessoas que diariamente realizavam aquela tarefa, os chamados vagalumes.

Aproveitando-se da escuridão prematura, uma figura singular caminhava pelas ruas de pedra calçada da pequena cidade. Seu andar era firme, mas desconfiado, tentando a todo custo permanecer nas sombras dos becos que a luz tinha dificuldade em alcançar. Estava em volta até os pés por um longo manto verde-escuro e ainda vestia um casaco de tom parecido por cima. Na cabeça, um bonito chapéu tricorne se afundava, escondendo quase que totalmente seu rosto.

A figura continuou a marcha escaldada até parar em frente a um estabelecimento grande e bem iluminado, uma hospedaria. Assim que empurrou a porta e adentrou no local, atraiu meia dúzia de olhares dos presentes espalhados entre as mesas. A figura estacou na entrada e também encarou seus espectadores. Rebateu todos os olhares, encarando de volta um por um. Tal fora a ferocidade expelida pelas retinas que os curiosos decidiram que era melhor voltar sua atenção para as paredes ou as próprias mesas.

A figura, tendo saído triunfante do embate visual, se dirigiu ao balcão onde um homem baixo e calvo se encontrava.

— Tenho uma reserva aqui —  anunciou com uma voz abafada.

—  No nome de quem?  — perguntou o homem, desconfiado.

— Senhor e senhora Morow.

— Um momento, por favor  — pediu o homem atrás do bar. Ele esticou os braços, puxou um livro debaixo do balcão e começou a folheá-lo.  — Está aqui, senhor e senhora Morow. Mas eu conversei com o senhor Morow, ele disse que se não viesse em pessoa, seria a senhora Morow quem iria ocupar o quarto.

— Precisamente  — disse a figura, retirando o chapéu. Quando o fez, mechas de cabelo avermelhado despencaram pelas costas revelando também um rosto redondo e austero.  — O senhor Morow não virá, tem negócios para resolver em Nahã. Em que quarto vou ficar?

— Te levarei imediatamente, senhora!  — disse o homem, pego de surpresa. — Mas já quer subir? Não está com fome?

— Com fome não, mas pensando bem vou querer uma garrafa do vinho mais forte que tiver.

— Tenho este aqui  — o homem foi e voltou da adega com uma garrafa escura, contendo um líquido rosado e o emblema de uma árvore colada bem no centro.  — É tronês. Safra rara, de quase duas décadas.

— Vai servir  — disse a senhora Morow depositando algumas moedas no balcão e pegando a garrafa e um saca-rolhas com o homem.

— Fique a vontade, senhora. Qualquer outra coisa, é só me chamar. Meu nome é Gykk.

A senhora Morow acenou para Gykk e foi se sentar em uma das mesas. Abriu a garrafa sem grandes dificuldades e se serviu de uma, duas, três taças, até que uma voz sorridente veio flutuando por cima de seu ombro.

— Senhora Morow, é? Teria me passado completamente despercebido, mas Morow era nome da minha mãezinha de criação, que Elai a tenha recebido — a mulher se virou para olhar a quem pertencia a voz. Vinha de um homem grande, de ombros e lábios largos, que se enrolava em um manto grosso cor de madeira. O cabelo era trançado e sua pele, escura. Ele se aproximou da mesa e indicou a cadeira com a mão. — Posso?

As Sombras de um Pretérito VermelhoOnde histórias criam vida. Descubra agora