A Capitã Vermelha

27 3 0
                                    

O sol, ainda tímido, começava a alaranjar o horizonte distante no flanco esquerdino do mundo, fazendo calor e luz atravessarem o fino véu enevoado que parecia cair sobre toda a área florestal. Estavam cortando caminho pela mata pois Alder achou por bem evitar as estradas; haviam chamado atenção demais em Lincon, embora as ruas da cidade estivessem tão vazias quanto as mesas do Gargalo. Durante o trajeto para fora da cidade, apenas duas pessoas viram Alder e Sasha escoltarem o senhor Batô, mas se o reconheceram, não fizeram qualquer tentativa de deter os piratas.

— Por favor, deixem-me ir embora! — choramingou o senhor Batô. Havia implorado para ser libertado durante todo o trajeto, sob a promessa de prata, ouro e até um baú cheio de pedras preciosas. Alder disse que em dado momento, quando ficou sozinho com ele, chegara a oferecer algumas acompanhantes Sébrias, mas a oferta que mais o deixou tentado foi a de quatro carroças com barris de rum.

— Fique calmo, senhor Batô, já estamos chegando — disse Alder em tom divertido.

— Repouso. Eu preciso de repouso! — insistiu ele. — Vou ter febre por causa desse ferimento! Vocês não entendem, quase toda a minha família morreu de febre!

— Ouviu isso, Sasha? — perguntou Alder, olhando para cima com uma expressão alarmada. Sasha e senhor Batô estavam montados, enquanto ele seguia a pé puxando a montaria do senhor Batô, uma égua magra de pêlo esbranquiçado. — Ele está insinuando que você não sabe fazer seu trabalho, não está ofendida? — ele balançou a cabeça. — Se eu fosse você, deixaria a ferida necrosar de propósito.

Sasha estalou os lábios, ignorando a provocação. Ela havia cuidado do ferimento do senhor Batô, se é que podia ser chamado de ferimento. O virote rasgara a pele, mas o dano havia sido completamente superficial, Alder muito provavelmente havia mirado apenas casaco. Por precaução, ainda lavou o ferimento com o vinho que haviam trazido e aplicado um cataplasma: uma mistura de mel, argila e bizonas que encontrou na mata. Sabia que o senhor Batô não corria qualquer risco.

— Por favor — insistiu o senhor Batô. — Já estou sentindo frio nos ossos. Foi assim que começou a febre que levou meu pai. Oh, pelos deuses, tenham misericórdia!

— Ora, deixe de drama homem! Veja — Alder apontou para leste da colina que desciam. — Lá está o porto, estamos quase chegando.

— Mas chegando aonde, afinal? — perguntou o senhor Batô a beira das lágrimas.

— Você é surdo, homem? Estamos indo até nossa capitã, já lhe disse uma dezena de vezes.

— Quem é essa capitã? O que ela quer comigo?

— Ela só quer fazer umas perguntas, fique tranquilo. E quanto a sua identidade? Bem, hm — Alder puxou um pouco as rédeas do cavalo, obrigando-o a desviar de um buraco no solo árido. —, já ouviu falar no assalto a casa verde?

— Mas é claro, toda Âmbria ouviu.

— Então digamos que você conhecerá a mente por trás daquela empreitada.

Olhos do senhor Batô quase saltaram das órbitas. Se durante toda a viagem suas queixas não haviam passado de manha, agora parecia indiscutível doente, com uma palidez fantasmagórica a lhe cobrir a face; ficara tão branca quanto ficara no Gargalo, quando Alder havia agarrado a seta.

— A ca... ca... — ele balbuciava debilmente. — A cap... capitã vermelha?

Alder sorriu.

— Ela não gosta muito do apelido, recomendo não usá-lo.

O senhor Batô seguiu a viagem em absoluto silêncio. Pelos tremeliques que o acometiam, agora ele realmente parecia sentir o frio nos ossos que se queixara momentos antes. Ao descerem a colina barrancosa, se viram separados de Lindens, a pequena cidade portuária que se estendia abaixo, por apenas mais alguns metros de estrada sinuosa. Já na beira da estrada, que se encontrava vazia, Alder fez com que o senhor Batô desmontasse e pediu para que ele fosse apanhar um grande pedaço de tronco seco que jazia na grama alta, sob uma árvore. O senhor Batô o olhou, desconfiado. Pareceu que iria abrir a boca para protestar, mas pensou melhor, percebeu que o medo era maior do que a desconfiança e acatou a ordem; foi até a grama alta pisando com cuidado, como se temesse que algum bicho o atacasse e começou a arrastar o tronco, com visível — e risível — dificuldade, na direção de Alder. Sasha olhou curiosa para aquele teatro, não fazia ideia do que Alder tramava, mas também não pretendia perguntar, até porque ele provavelmente responderia apenas com aquele sorriso travesso que lhe dava nos nervos. Agora, com o tronco que o senhor Batô havia trazido em mãos, Alder apontava para uma rocha em formato de pirâmide a uns cem passos de onde estavam, indicando que o senhor Batô deveria deslocá-la para debaixo de uma árvore magra e feia, de folhas secas. O senhor Batô estudou a expressão de Alder a procura de alguma diversão, mas o rosto sempre tão amigável do pirata agora tinha uma linha reta e seca no lugar do sorriso costumeiro, além dos olhos adotarem uma frieza arrepiante. O senhor Batô, que definitivamente não queria desafiar aquele olhar se virou para cumprir a tarefa inusitada, mas dera apenas dois passos antes de cair, completamente desacordado. Alder havia girado o tronco contra sua cabeça, o golpe tão forte que partira o tronco em três.

As Sombras de um Pretérito VermelhoOnde histórias criam vida. Descubra agora