Amnésia*

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Liam POV

-Pode mandar vir a próxima por favor. - pousei o telefone esperando a próxima candidata ao papel de secretária.

O sol invade furtivo o cubículo onde me encarcero todos os dias, é raro ter dias como este, deixam-me sempre animado. Impulsiono a cadeira para mais perto da grande janela, saboreando cada raio de sol. Olho em frente e lá estava Louis, parecia conversar alegre com Wind, que ligeira, desapareceu do campo de visão.

Não acredito que a deixei escapar, tinha-a na palma da mão.

Quando abri as vagas para o papel de secretária, fui até à universidade de Harvard, a minha mãe tem por lá uma amiga bastante dotada...

Não acredito em Deus ou no destino, mas acredito naquela mulher. Claire é uma professora já com alguma idade e tem os melhores instintos que já cruzei, aconselhou-me a contratar Wind, dizendo que a encaminharia para mim. Ainda me lembro das suas palavras "Agarre-a bem, Liam, irá fazer grandes coisas". A minha intenção era fazê-lo, mas houve uma confusão com os nomes e acabei por a rejeitar. Arrependi-me de imediato. A minha mãe chamou-me todos os nomes que conseguiu encontrar, o que até foi engraçado, visto que a considero uma mulher extremamente educada e correta, ás vezes é bom saber que é humana. Como é óbvio, fiz tudo, e continuarei a fazer, para a ter a trabalhar para mim. Não vou deixar Louis levar a melhor. Há muito em jogo para o deixar vencer.

Assim que o relógio apitou, marcando as seis horas, deixei o escritório, regressando a casa. Estava cansado, foi um dia complicado, principalmente por causa dos desfiles que se avizinham.

Abri a porta de casa, e apercebi-me no mesmo instante de que algo estava errado.

A luz do primeiro andar estava acesa. Segui pelo chão de madeira polida, fiz os possíveis para evitar o ranger enquanto subia as escadas. Uma melodia incerta cantava baixo, vinda do meu quarto. Agarro no telemóvel, discando número da polícia, mas à medida que me aproximo do som, mais familiar a voz aparece.

Rodo a maçaneta, empurrando a porta com violência.

-Meu Deus Liam! Queres matar-me de susto?!

A morena permanecia deitada na minha cama, bebericando um copo de vinho.

- Isso pergunto eu, mais um pouco e chamava a polícia.

-Sempre foste um exagerado.

-Exagerado?!

Pareceu ponderar por momentos, acabando por concordar.

-Ok, se calhar podia ter avisado que estava por cá.

Levantou-se, arrastando-se até mim. Sufocou-me com um abraço, não perdeu tempo e beijou-me.

-Leah pára.- afastei-a - Concordámos ter uma relação estritamente profissional.

-Sou profissional na cama...- sussurrou ao morder o lábio.

Olhei-a de cima a baixo. O robe castanho que costumo usar resguardava-lhe o corpo, mas depressa o deixou.

-Oops.

Estava nua e exposta para mim. Era perfeita, podia estar horas a contemplar-lhe os seios, as pernas, as curvas, mas no fundo, sei que nada significa nada. As mãos aveludadas regressaram ao rosto, tocando a barba áspera por fazer. Fez-me sentir através da camisa que me envolve cada parte sua, antes de desfazer o nó da gravata.

-Já disse que não. Não estou com paciência.

-Deus, que rude.

-Como se não me conhecesses.

-Pois é... esqueci-me que não tens coração. - zombou.

-Devias estar a trabalhar, é para isso que e te pago.

-Agora?

-Agora.

Deitei-me na cama e Leah a meu lado se sentou recomeçando a lengalenga do costume:

-Controla a respiração primeiro.

Assim o fiz. Fechei os olhos, foi como se de repente tudo ficasse abafado, como quando se está debaixo de água.

Quando os voltei a abrir, já não estava no meu quarto. A ambulância chiava ao passar nas lombas ecoando dores de cabeça infernais. O corpo estava dormente, mas intacto.

-Mantenha a calma, vai ficar tudo bem. - era uma voz distante que ribombava grave, mas com suavidade, acalmou os meus tremores. A visão outrora turva focou um homem que se debruçava perto de mim sobre um pequeno monitor. Parecia tranquilo e sério, mas sei que sofria com dores, é impossível a grande ferida aberta na mão não o deixar desconfortável. O teto voltou a ser o meu foco, o seu branco intenso obrigou-me a fechar os olhos por minutos.

-Melhor? - voltei a enxergar. Leah segurava uma caneta e escrevinhava num bloco de notas.

-Não. Foi igual às outras vezes.

-Estamos nisto há um ano, será possível que não te lembres de mais nada?

Estava frustrada, mas não mais que eu, nunca mais que eu. Apesar de tudo, tenho esperança, recuso-me a desistir.

Perdi alguém. Perdi fisicamente, apenas, ele está de facto vivo!

Geoff Payne é um homem no mínimo estranho, nem tanto pelo aspeto tosco, mas também. Principalmente por ser sujeito de razão e engenho. Mantém a cabeça fria mesmo no pico do desespero, é inteligente e admiro-o. Desde muito cedo me lembro de o ter como homem crente, - o único lado dele que não tem cabimento- uma simples estupidez.

Deus não existe. Não existe, já disse! Toda a vida sofri, desgostos que atraíam desgostos e arrastavam miséria, sou um homem sem fé.

Se de facto existisse uma entidade superior ninguém sentiria dor, não haviam guerras nem mortes sangrentas. Se Deus existisse, lembrar-me-ia do que perdi. Sei que perdi, mas não sei o quê.

Carregava sempre consigo um pequeno cristal branco preso a um entrelaçado de linha, escondido debaixo da camisa, de modo a que quando trazia o blazer desapertado, era possível ver o relevo de um pequeno retângulo irradiando "energias positivas" -palavras dele, não minhas. Fazia ocasionalmente retiros, achava importante estar com ele próprio, descobrir-se, encontrar-se... mas esquecia-se de nós. Quem abandonava em casa. Não tenho boas memórias de quando era pequeno, mas valiosas não deixam de ser. Um pai ausente e uma mãe perturbada criaram o que hoje sou. Apenas mais tarde, quando a realidade atingiu ambos, mudaram drasticamente: Geoff passava os dias em casa, trabalhava na empresa quando lhe apetecia, cuidava de mim e da sua esposa...

Segundo a minha mãe, no acidente, eu ia a conduzir. O meu pai ia atrás e ela no banco de pendura, ao que parece estava cansado e com sono, trovejava e a chuva chicoteava com força o chão. Perdi o controlo do carro.

Apenas eu sofri - uma outra prova de que, se houvesse um Deus, nada de mal me teria acontecido - quando entrei em coma, Geoff não aguentou o meu estado e decidiu fazer um retiro para umas quaisquer montanhas sagradas na Índia. Fazem três anos este ano que não o vejo. Uma vez por semana, manda-me uma mensagem, a contar como está a ser e o quão difícil é estar longe de mim e de minha mãe. Sei que não está. Não está a ser difícil, Geoff Payne nunca foi muito bom mentiroso; às vezes esqueço a indiferença do castanho térreo dos seus olhos de sorriso hipócrita. Sempre foi desligado. De qualquer forma, fi-lo prometer que quando recuperasse a memória, voltaria a Londres para me ver. Soa vão, mas rogo para que não o seja.

-Liam! - Leonard entrou com uma enorme pilha de folhas que pousou na mesa - Não estou a aguentar, tens de arranjar outra pessoa para o lugar de secretária, não consigo tratar da contabilidade e da organização de tudo ao mesmo tempo.

-Só mais um pouco Leo, estou quase a convencer a Wind a juntar-se a nós.

-Estás quase a convencer-me que estás obcecado, ela está a trabalhar para o Louis ok?

-Mas-

-Sem "mas" Liam, arranja uma secretária, ou trata tu do trabalho que ela deveria fazer.

Leo é o mais parecido que tenho a um amigo... e como viram, é um dos principais pilares da empresa, faz o trabalho de muitos incompetentes que despeço, ocupando os seus lugares até arranjar um substituto. É portanto boa pessoa.

Not about businessOnde histórias criam vida. Descubra agora