Perguntas não requisitadas deveriam ser excluídas. Mas quem disse, na conversa, que haveria uma votação? Ter treze anos recém-completos não garantia liberdade. Nem de expressão, nem de ir e vir, muito menos de fingir que o celular pré-pago ficou sem crédito para não concluir o interrogatório via SMS.
Esse era o ônus de ser amiga de Antonella Leican - como qualquer moradora de Jurerê Internacional, o seu pacote de ligações era ilimitado. E ai de Nathália se não a atendesse para contar as fofocas! Fossem reais ou imaginárias.
Naquela tarde ensolarada, tratavam de um típico exemplo do segundo caso.
- Confessa, bijuzinho! Eu sei que perdesse o BV pra um carioca! Já tava na hora! Confessa, vai! - a voz se exaltava pelo bocal do Motorola num timbre agudo. Não precisava vê-la para saber a pose em que a maluca se encontrava: provavelmente deitada de bruços, com as pernas dobradas para cima e meias brancas até as canelas. Os dedos, pelos estalos que ouvia, com certeza tamborilavam no celular de flip, fazendo um eco irritante. Nada tão sonoro quanto o uivo da brisa contra o dossel da cama.
Na mesma hora, prendeu o riso pela lembrança da expressão no rosto de Fiorella, a mais velha das Leican, quando Maria Flor, inocentemente, comparou tal cortininha carérrima com uma tela anti-mosquitos. Parecia um francês ultrajado diante de um sabão caseiro. Ainda assim, era boa gente, quase pé no chão. Ao contrário da caçula, viciada em mangás, que insistia em viajar na maionese e exigir histórias épicas.
- Foi uma viagem, Tontom, não um hentai. - Nathália enfim replicou, abrindo os braços no colchão. O ouvido doeu com o riso debochado do outro lado da linha. Tentou, em vão, engolir mais um suspiro de estafa.
- Hentai, nega? Para! Antes de escrever um livro, a gente aprende o b-a-bá, né?
- Então tá bom, sou analfabeta. Tá respondido? - o timbre se manteve o mesmo, indolente; o ânimo não.
Era difícil argumentar contra fatos. Embora não aguentasse mais tanta pressão para dar o seu primeiro beijo. As amigas diziam ser de brincadeira, mas só haviam piorado depois que foi a vez de Flor em um verdade ou desafio na última festa do balé. Não parecia coincidência.
- Qués conversar? - Antonella se rendeu, abrindo mão das implicâncias. Sabia que, quando Nani ficava suspirante, alguma coisa tinha acontecido.
Geralmente era Eduardo, "o demônio em pessoa". O único ato de bondade na conta do guri havia sido acidental: apresentar elas duas. Isso porque ele e Fiorella estudavam há anos na mesma turma. Quando queriam sair, os pais obrigavam as cordas a passearem com as caçambas. Assim conectaram as "pirralhinhas 1 e 2", ainda no primário. Um gesto muito "altruísta".
- Não, nega, eu tô bem. Só tô cansada.
E nessa pausa, a gente dá graças a Deus por, em Floripa, falarem tanto "nego/nega" o tempo todo. Pois em 2002, a moda ainda era chamar de miguxa. Ninguém aqui quer lembrar.
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Ultravioleta (da Série Destino Trocado)
General FictionAntes do Rio de Janeiro. Antes da Universidade. Havia apenas uma menina, a Ilha da Magia e todos os mistérios que, em sua beleza, ela segreda. Lendas sobre índios e bruxas envolvem a realidade ao toque da imaginação. A adolescência é a eterna dança...