Chamas

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KTH.

Queimado.

Ou melhor, carbonizado.

Se fosse uma queimadura normal, estaria vermelho. Talvez rosado. Mas definitivamente não estaria marrom. Era como se milhões de minúsculas partículas de carvão houvessem sido incrustadas em sua pele pálida e leitosa. Um pequenino hematoma havia se formado em volta, colorindo as bordas carbonizadas de um suave tom de roxo. Mas curiosamente, quando tocou o ferimento, este era completamente indolor, pelo menos ao toque. Na verdade, não estava sentindo o pequeno ponto de pele negra, exceto se o tocasse. Só assim percebia as pequeninas pontas irregulares e granulosas grudadas ali.

Outro choque: elas se recusavam a soltarem-se de sua pele. Tentou as puxar delicadamente, mas estavam fortes. Estranho, já que parecia ser apenas um ferimento superficial. Quando puxou com mais força, uma dor excruciante o atingiu, fazendo o jovem pianista se curvar, e soltar um grito agonizante. Entre respirações cortadas e mãos trêmulas, atordoado pela dor terrível, o pianista sentiu algo estranho em seu pescoço. Ao novamente pôr as mãos, agora suando frio, no ferimento, constatou o que temia: estava sangrando.

Desnorteado pelo fato de um ferimento tão pequeno pudesse causar-lhe tão súbita e forte dor, se levantou trôpego, e fez tudo o que pôde para limpar e estancar o sangue. Custou, mas conseguiu manter um curativo simples, com gaze e antisséptico, por cima. Sabia que aquilo demoraria anos para sair de sua pele.

O que o pianista não sabia, é que não tinha esses vários anos. Seu destino foi traçado no exato momento em que viu o bailarino, em seu esplendor azul e brilhante, seguindo passos hipnóticos de seu balé misterioso. Não havia mais saída; ele havia lhe marcado. Agora, se pertenciam.

Porém os mortos não podem possuir aos vivos, da mesma forma que os vivos não podem ter os mortos.

E como a triste sina do jovem bailarino já havia sido cumprida, nada lhe restava, senão o desejo de vingança, e a esperança de que alguém atendesse às suas súplicas.

O único que lhe restava era aquele pianista, aquele triste e jovem pianista, que havia morrido em plena vida.

Engraçado como o destino podia ser moldado e alterado pelo mais simples gesto. O gesto que não havia salvado a vida daquele pobre inocente, assim como o gesto que não impediu que a pequena irmã do pianista perdesse a sua. O mesmo e cruel gesto que havia tirado tudo do pianista.

Não só a pessoa que ele mais amava, mas também a pessoa a quem seu destino estava entrelaçado. Chamem do que desejarem: alma gêmea, parceiro predestinado, Akai Ito, metades. São exatamente a mesma coisa, um laço formado, uma promessa feita pela vida de que ninguém teria de passar pela tortura de viver sozinho. Se você acredita em Deus, sabe que Ele criou todos os animais com parceiros, e fez a mesma coisa com o homem. Por que então, qualquer outra pessoa, nesse universo, não teria o seu parceiro? Mesmo separados, ambos foram feitos para ficarem eternamente juntos.

Mas o que separava os dois não era algo simples de se contornar.

Era a morte.

O bailarino, o doce bailarino do pianista, era apenas um rastro de alguém que já existiu, as cinzas de uma fogueira que se apagou, a fumaça pairando sobre o último suspiro das chamas que se extinguiram.

O bailarino sabia. O pianista, não. Mas o dançarino, mesmo em sua tristeza e o destino que lhe fora dado, não conseguia se desprender desse mundo, tanto pelo desejo de vingança quanto... Ele havia descoberto, um dos motivos pelos quais ainda estava no mundo físico era porque não havia tido seu laço formado com seu predestinado. E não havia como ele formar o laço... Exceto se o pianista, seu pianista, fizesse a transição.

Deste mundo para o mundo dele.

Talvez o pianista pudesse ser mais feliz com ele. Neste plano, o pobre jovem estava definhando, e aquilo doía aos olhos do bailarino. Queria poder abraçá-lo, dizer que tudo ficaria bem, que não precisava temer, pois estavam juntos. Bem, na medida do possível.

E foi exatamente o desejo de estar junto ao bailarino que fez o pianista se dirigir até a mansão novamente, cada vez mais castigada pelo tempo afora.

Chamou pelo misterioso garoto. O garoto pelo qual seu coração voltava à vida, e clamava para ter o corpo dele sobre o seu, em uma sinfonia que os unisse em um só ser. Como não obteu resposta, chamou novamente, mais alto. Quando ouviu seu nome, parecendo ser chamado dentro de sua própria mente, imediatamente olhou para trás, para ver, com seu coração vibrando de felicidade, o seu bailarino, sentado de costas para si, no pequenino banco do maravilhoso piano, onde outrora havia tocado canções para uma pequena garotinha dançar alegremente em seus pezinhos ágeis e delicados.

O abraço de ambos foi quase uma necessidade. Novamente, a pele do bailarino, extremamente suave ao toque do pianista, estava fria. Apertando-o contra si, inebriado pelo maravilhoso aroma dele, o pianista ouviu leves soluços. Não sabia porque seu lindo bailarino estava chorando, mas não deixaria nada afligir seu amado.

- Me perdoe. Me perdoe, por favor. - o delicado bailarino continuava dizendo, em meio a grossas lágrimas, que banhavam sua face como pequenos diamantes, refletindo a luz etérea da lua lá fora.

- Não chore... Eu estou aqui. Não vou deixar nada acontecer a você, a nós. - o pianista ergueu o rosto escultural e suave do garoto, fazendo aqueles olhos de um oceano calmo olharem dentro dos seus.

- Me perdoe por te amar. - o bailarino sussurrou, levando os lábios aos do seu pianista.

Um beijo calmo, porém intenso, emudeceu qualquer outra coisa que ambos pudessem dizer. Exceto o pianista, que se separou de seu jovem por alguns segundos, apenas para dizer:

- Eu te amo.

Novamente, um beijo uniu o jovem casal em um único ser, uma perfeição da natureza, unida e mantida pelo mais puro amor, dado e criado pela vida.

Mas a vida havia entregado o bailarino nas mãos de sua irmã, a morte.

- Me perdoe, meu amado pianista. - o bailarino novamente sussurrou. - Me perdoe por ser o culpado de sua queda.

Dito isto, pôs as mãos na ferida do pianista, e em um só movimento, a arrancou de sua pálida tez.

The PianistOnde histórias criam vida. Descubra agora