Memórias

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O jovem pianista acordou ainda sentindo a dor agonizante em seu pescoço. Não havia entendido o motivo de seu amado bailarino ter cometido tal crueldade consigo... Mas já o perdoara; ele o amava, afinal.

Quando recuperou seus sentidos, o rapaz se sentiu desnorteado; estava em um lugar diferente. Algo em seu coração dizia que aquele lugar era a mesma mansão em que sempre via seu amado, porém... Não estava tão seguro de si quanto a isso. O ambiente estava mais intenso... A escuridão quase o absorvia, e a fraca e etérea luz do local, além de escassa, vinha apenas de um local.

Intrigado, o pianista se levantou de onde estivera caído e seguiu para a luz, ouvindo, dessa vez, não um som de piano, mas um grave ressoar de órgão. Tão longínquo quanto a linha do horizonte sereno de uma noite fria e escura.

Seguindo o som do órgão, que parecia seguir para um quarto específico, o pianista acabou se encontrando no meio de uma sala enorme e escura, sem a luz etérea que estava escapando das pequenas aberturas dos outros cômodos. Não possuía janela alguma, apenas uma porta desgastada pelos anos sem cuidado.

Algo naquela sala estava o incomodando. Não era apenas a falta de janelas... Além dele estar mais frio que os outros, havia algo simplesmente perturbador ali... O pianista só não sabia dizer exatamente o quê.

Receoso, porém cada vez mais intrigado pelo mistério que tudo aquilo despertava em si, o rapaz caminhou lentamente, escutando o inquietante som das tábuas de madeira gasta rangendo abaixo de seus pés. Não parecia haver nada de alarmante naquela sala... Até o jovem tropeçar em algo.

Achou deveras estranho haver um grupo de tábuas soltas no chão, em uma fração mais elevada em comparação com as demais. Havia tropeçado em uma delas, a mais desconexa dentre as demais.

Não entendia o motivo de tal sentimento, mas o jovem, embora curioso, não tinha certeza se deveria as tirar para ver o que havia embaixo. Algo em sua mente lhe gritava para correr, para sair dali o quanto antes, mas seus músculos se recusavam a se mover. E impelido pela curiosidade, ele começou a remover as tábuas soltas.

Uma, duas, três... Haviam muitas. Mas todas simples de retirar, como se alguém tivesse aberto e fechado o buraco que havia embaixo repetidas vezes.

Não havia aparentemente nada; apenas uma rasa cova feita no chão. Não satisfeito, o jovem resolveu cavar, até encontrar algo que parecia ser uma superfície de madeira.

Retirando a terra que havia por cima, o rapaz encontrou uma enorme caixa de madeira, que não estava lacrada de nenhuma forma. Agora, a voz em sua mente lhe suplicava para sair dali, que havia perigo.

"Hyung" o pianista ouviu, se assustando. Era a linda voz de seu amado bailarino... Porém estava só ali. Não havia absolutamente ninguém mais.

Só então percebeu... A noite estava silenciosa. Nenhum som ressoava, nem mesmo longínquo.  Nenhuma coruja, nenhum grilo. Absolutamente nada além do mais completo, passivo e perturbador silêncio reinava ali.

Decidido, o pianista suspirou profundamente e puxou a tampa da caixa. Um odor acre de algo lhe atingiu em cheio, como se algo extremamente antigo estivesse repousando ali. Era repulsivo, como... Como o cheiro rançoso de carne em decomposição.

Haviam várias faixas e trapos sujos dentro da caixa, como se tampando o que fosse que estivesse emanando aquele odor insuportável.

Porém, a partir daí, o pianista quis que jamais tivesse descoberto aquela caixa.

Três corpos humanos jaziam, em seus restos mortais decompostos, dentro da caixa, que era um tipo de sarcófago. Um deles era menor, com os membros deformados, outro estava tão desfigurado que era impossível indentificar se era do sexo masculino ou feminino, porém o outro, o último, era inconfundível.

Horrorizado, o pianista encarou, impotente, o corpo flácido de seu amado bailarino, repousando eternamente em sua expressão de choque. Seus olhos, seus lindos olhos, estavam completamente sem vida alguma, a boca aberta em um último grito silencioso, e a jugular aberta por um corte profundo.

Seu amado bailarino estava morto.

Em desespero, correu para longe dali, desejando nunca ter visto o que viu. Não suportava a ideia, seu amado não poderia estar morto... Quanto mais em um estado avançado de decomposição como estava.

Gritou por ajuda, mesmo sabendo que ninguém viria. Estava completamente sozinho ali, sabia disso.

- Hyung... - Ele ouviu um soluço baixinho, vindo exatamente do mesmo lugar onde estavam os corpos.

- Não... Você... Você não é real. Você está... - o pianista foi incapaz de concluir a frase. Não conseguia crer... Havia se apaixonado por um espírito.

- Hyung... Eu sou real. Só... Nós fomos separados. - o bailarino se levantou, e o coração do pianista apertou ao ver o fantasma de seu amado chorar.- eu... Nós nos pertencemos... Mas ele... Ele te tirou de mim...

O pianista não aguentou tais palavras, e foi em direção ao triste bailarino, o abraçando como se sua vida dependesse daquilo.

- Seja lá quem foi, eu vou fazer pagar. - ele olhou nos olhos suaves de seu amado, agora úmidos.

- Me perdoe... - o bailarino sussurrou. - eu... Precisava te mostrar isso. Você... Você é a única esperança que eu tenho de fazê-lo pagar por tudo... Ele é o culpado de ter tirado sua irmãzinha.

O sentimento de vingança do pianista apenas se inflamou mais. Ele faria o aquele covarde pagar por tudo, por ter tirado sua irmã e seu amado de si.

O beijo de ambos foi tão real quanto o sol se pondo todos os dias, tingindo o céu em tons de roxo, rosa e laranja.

Quando o pianista acordou, nem se lembrando de ter apagado, o mundo havia voltado à vida: cantos da noite ressoando, a suave brisa balançando as vastas cortinas, a luz entrando pelas janelas. Mas a caixa contendo os corpos ainda estava lá.

Decidido, o jovem pianista precisava se comunicar com a polícia, para fazer o culpado pagar... E para pelo menos dar descanso ao espírito de seu amado bailarino.

Discando o número de emergência da polícia, ele esperou.

The PianistOnde histórias criam vida. Descubra agora