Trauma

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Quando eu tinha 7 anos, ganhei meu primeiro celular. Ele era prateado e a tela levantava para os botões aparecerem, era igual o do meu pai e eu achava isso o máximo.

Certo dia meu pai saiu de manhã para trabalhar, e sem querer esqueceu o celular na mesa após o café. Pouco tempo depois quando minha mãe foi arrumar tudo, ela encontrou o aparelho onde ele havia esquecido, bem na hora em que a tela brilhou. Então ela pegou e deslizou para desbloquear, lendo a mensagem que tinha chegado:

"Querido, já estou te esperando aqui, onde você está?"


O mais decadente nisso tudo é que minha mãe já desconfiava que vinha sendo traída, ela não era burra, nunca foi, mas se fazia de desentendida. Até hoje não entendo o porquê dela fazer isso consigo mesma. Como pode uma mulher se submeter a esse tipo de situação? Por mim e pelo meu irmão? Pelo dinheiro que apenas meu pai colocava em casa? Para mim nunca achei uma justificativa aceitável para tamanha humilhação. Não era sequer por amor, o amor ali já não existia mais.

Nesse dia cheguei da escola às 11:40h como sempre, e para minha surpresa meu pai chegou logo atrás de mim. Ele aparecer em casa na hora do almoço era algo que nunca acontecia, já que seu trabalho era longe demais da nossa casa. Fiquei feliz por vê-lo e me aproximei dele para abraçá-lo, mas fui empurrada com força e caí no chão. Nunca vou esquecer esse maldito dia, o ultimo dia em que admirei meu pai, em que senti coisas boas por ele.

-Cadê o meu celular Loren? -gritou ele entrando transtornado.

-Eu não vi a porra do seu celular. -respondeu minha mãe chegando no cômodo, também irritada.

-Eu quero a droga do meu celular agora Loren!

-Eu não sei onde tá o celular seu louco, do jeito que tu é irresponsável deve ter deixado em algum lugar por aí!

-Eu não sou louco Loren, eu sei que deixei aqui, me lembro de ter deixado na mesa, mas não tá mais. Tu pegou que eu sei, agora me devolve! -gritou grosseiramente, pois conhecia minha mãe e seus gestos suspeitos quando ela mentia.

-Eu não sei onde tá essa merda! Se você não sabe, eu sei muito menos! -gritou ela de volta em tom ainda mais alto, e para mim, assustador.

-Eu vou achar o meu celular nem que eu tenha que revirar essa casa inteira e tenha que jogar tudo no chão, eu tô te avisando: é melhor você me dar isso antes que se arrependa! -ameaçou ele.

Minha mãe apenas revirou os olhos, se sentou no sofá com um copo de suco na mão e ligou a tv, colocando em um volume bem alto. Nesse momento eu senti que o que eu veria em seguida não seria nada agradável, então fui para debaixo da mesa correndo, o que talvez tenha sido uma péssima escolha, o que foi uma péssima escolha de esconderijo.

Meu pai se virou para a mesa onde o almoço estava todo posto para mim e meu irmão que logo chegaria da escola também e puxou a toalha de mesa. Tudo que estava em cima dela se esparramou no chão, como naquelas cenas dramáticas dos filmes. Mas na vida real, o caldo quente espirrou nos meus braços, e os cacos de vidro da jarra de suco e dos copos se partiram em centenas de pedaços, poucos me atingiram, mas foi o suficiente para fazer um corte perto da minha boca e um na minha bochecha. Eu estava em choque, tremendo, com muito medo do que acabaria acontecendo. A cicatriz perto da boca está no meu rosto até hoje.

Minha mãe continuava sentada, como se não estivesse o vendo ou ouvindo, como se não soubesse de nada, o que o deixava ainda mais furioso. Ele desligou a tv da tomada e a puxou com força para fora do sofá, onde começou a jogar todas as almofadas para cima, mas ela continuava agindo normalmente, indiferente. Depois ele foi para o banheiro do corredor, jogou tudo que tinha na bancada mesmo sendo visível que não estava ali. E então ele abriu meu quarto que estava mais perto. Foi quando me toquei de que meu celular estava em cima da minha mesinha de cabeceira. Corri. Mas só consegui chegar a tempo de vê-lo pisando nele, destruindo tudo com sua raiva por não ser o seu maldito celular. Ele tirou o lençol da minha cama, meus bichinhos de pelúcia caíram todos no chão, meus brinquedos, e eu só conseguia chorar e implorar:

-Papai, para com isso! - tentei.

Acho que com pena de mim, algo que não acontecia normalmente, minha mãe entrou no quarto e tacou o celular no peito dele, saiu de lá e se trancou em seu quarto.

Ele estava preocupado apenas com o aparelho, e passou por mim ajoelhada no chão chorando, falando vários palavrões, batendo a porta, e indo embora de casa.

Meu irmão chegou não muito tempo depois, e viu a casa naquele estado, achou que tínhamos sido assaltados, mas ficou feliz ao entrar em seu quarto e ver que estava tudo como ele havia deixado, e ficou rindo de mim e da situação em que eu estava, seja, machucada, inchada de tanto chorar. Weston me odiou desde o primeiro dia em que não era mais o filho único, ele colocava toda culpa da nossa vida caótica em mim e infernizava cada um dos meus dias o máximo que podia.

Nossa mãe saiu do quarto um tempo depois gritando, nos xingando, nos mandando arrumar tudo. Ela me puxou do chão, olhou séria para mim e me mandou parar de ser tão fraca. Aquilo não fazia sentido, eu era uma criança inocente, não conhecia a paz de um lar tranquilo e seguro, meu pai era o único que até então me demonstrava o mínimo de afeto. Eu tinha motivos para chorar. Esse foi o episódio mais traumático da minha infância.

Quem me dera ter sido o último. Quem me dera meu celular ter sido a única coisa que perdi por causa das brigas dos meus pais. Quem me dera ter tido uma infância diferente, uma vida diferente. Quem me dera não ter nascido nessa família. Mas se não desse errado, não seria eu.

Minhas lembranças de felicidade eram sempre quando eu ia sozinha à praia, que não ficava muito longe de casa. Era a minha gasolina para conseguir manter sempre um sorriso no rosto e parecer estar bem para que as outras pessoas não desconfiassem dos absurdos que eu passava, do horror que era morar sob o mesmo teto que pessoas que preferiam que você não existisse, sendo tratada como um fardo.

E foi ainda criança que eu aprendi que não podia depositar em ninguém a responsabilidade de me fazer feliz, de me deixar bem, essa responsabilidade era completamente minha e eu sonhava com o dia em que poderia me sentir verdadeiramente assim. Eu não tinha amigos por conta dos traumas, meu irmão era horrível comigo, meus pais mal olhavam na minha cara. Eu não podia contar com ninguém.

A garota que nunca esteve onlineOnde histórias criam vida. Descubra agora