O equívoco do amor.

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O rapaz pensou que amava. A moça estava certa do amor que
sentia. Duas pessoas numa mesma relação e com perspectivas distintas. Namoro e
casamento em um curto espaço de um ano. Ele, um advogado já bem-sucedido,
apesar da pouca idade. Ela, uma contadora formada que ainda não sabia o que
fazer com o diploma que recebeu da faculdade.
O rapaz cresceu num contexto de muitas exigências. Ele não fora
educado para perder. Desde muito cedo fez da sua vida uma coleção de
reconhecimentos e premiações. O melhor no colégio, o melhor nos esportes e o
melhor na faculdade. Em casa, prevalecia uma frieza na relação com os pais. Amor
real, mas amor distante, coisa de quem não descobriu a beleza de poder ser frágil e
de ter um colo de mãe onde se possa chorar.
A moça, ao contrário do rapaz, possuía uma fragilidade
assumida. Cresceu num ambiente mais afetuoso, porém menos exigente.
Carinho não lhe faltou, mas, no excesso de íelo que lhe dispensaram, os pais
esqueceram de educá-la Dará a coragem.
Os dois tinham riquezas; os dois tinham pobrezas. E assim :les se
casaram. A relação foi fortemente marcada por conflitos. O rapaz quis que a moça
se transformasse numa vitoriosa da noite para o dia. Ela não soube ser. Ele a
projetou em tudo o que pôde, mas o resultado que ele esperava não aconteceu.
Depois de alguns anos juntos, o casamento se desfez. A moça foi embora sem
deixar muito clara a razão da desistência. O rapaz não conseguiu assimilar a perda.
Buscou todas as justificativas para o rompimento. Alegou que a família não a
deixava crescer e que as inúmeras interferências afetaram profundamente a
relação dos dois.
Eu ouvi a história pelo lado do rapaz. Havia um sofrimento muito
real em suas palavras. Desconforto por não saber a exata razão do rompimento.
Depois de demorada conversa, eu o desafiei a pensar a respeito de
sua condição humana. Não queria que ele se resumisse ao momento presente,
mas que tivesse coragem de olhar-se com um pouco mais de inteireza.
Compreender o momento presente requer recuo no passado. Há sempre um
cordão costurando as histórias que precisa ser identificado.
Quis saber o jeito como ele foi criado. Notei que em sua
educação não havia muito espaço para a fragilidade. Desde muito cedo sua
relação com os pais lhe conduzira pelos caminhos das exigências. Aquele rapaz
não sabia perder. Pude perceber que todas as justificativas que ele usava para
explicar o rompimento eram formas de eximir-se do fracasso. Ele não queria
recohhecer-se perdedor.
Preferia relacionar a perda de sua mulher às influências da sogra,
que, segundo ele, insistia em infantilizar a filha.
Não quis mergulhar muito nesse mérito. Durante nossa conversa,
resolvi desafiá-lo ao reconhecimento do fracasso. Pedi que não justificasse nada, mas
que apenas reconhecesse que, naquele momento da vida, o lugar do pódio que lhe
pertencia era o último lugar.
Ele me olhou assustado. E foi então que eu tentei lhe convencer
que perder não é tão vergonhoso assim, e que não saber perder é um jeito
estranho de perder sempre. Ou assimilamos o que perdemos hoje, e assim
perdemos de uma única vez, ou então fingimos que não perdemos, e assim
perderemos a vida inteira. Ele concordou.
Continuei desafiando-o. Perguntei se a razão de sua tristeza estava
no fato de ter perdido alguém que ele realmente amava ou se estava somente
lamentando ter fracassado na vida, colocando o casamento na mesma
perspectiva que um fracasso ocasional de sua vida profissional. Ele não soube
dizer.
O rapaz, pelo pouco que pude escutar, havia investido muito
para transformar a moça na mulher dos seus sonhos. Ele acreditou que poderia
libertá-la de todos os condicionamentos que a família lhe legara. Para ele, afastá-
la de seu contexto familiar seria o melhor jeito de ajudá-la. Ele não queria que ela
continuasse levando adiante a fragilidade que tanto marcara sua personalidade ao
longo de sua vida. Para ela, fez inúmeros projetos, mas nenhum foi adiante. Ele
não soube conviver com a fragilidade da mulher que elegera como esposa.
Achei interessante a história. Fiquei intrigado ao perceber o quanto
as nossas idealizações são frutos de nossa história pessoal.
O rapaz não suportava o fato de a família da moça continuar
paparicando-a, mesmo após o casamento. Conviver com aquela situação parecia
evidenciar-lhe tudo o que na vida lhe fora ausente. Ele não teve a família que
ela tinha. O seu ambiente não foi acolhedor como fora o dela. Ter que ver o que
ele nunca teve naquela que agora estava ao seu lado era um jeito de evidenciar o
seu fracasso e suas carências.
Ele a quis à sua imagem e semelhança. Toda sua postura de querer
desvinculá-la de sua mãe era um jeito estranho de punição, como se ao romper os
vínculos que ele considerava infantilizadores ele pudesse amenizar suas carências de
filho. Suas atitudes estavam constantemente motivadas por um processo
inconsciente que pode ser bem explicitado a partir da frase: "Já que eu não tive,
você também não pode ter!" E claro que essa frase nunca fora assumida, mas ela
estava como pano de fundo o tempo todo, perpassando o esforço do rapaz em
tornar a esposa uma mulher independente.
Por não ter tido a proteção necessária, o rapaz apreendeu boa
parte da vida na solidão. Com isso, projetou em sua cabeça que a mulher ideal
deveria ser também assim. Bonita, livre, bem-sucedida. Mas a mulher com quem
ele havia se casado não era nada disso. Ele a quis construir.
Por amá-lo de verdade, conhecedora de quem ele era e do que ele
pretendia, a moça até que tentou mudar. Mas as exigências eram demais. Ela
precisou abrir mão de quem ela era. Não havia honestidade na proposta para o
seu crescimento, mas uma competição. O rapaz não sabia ficar sem competir.
Em tudo ele queria ser o melhor. E, em nome de um amor que ele julgava sentir
por ela, empenhou-se por torná-la órfã, com o objetivo de curar um pouco de
sua orfandade.
Parece estranho, mas foi justamente isso que mais tarde ele, de
modo envergonhado, pôde admitir. Foi então que ele disse: "Eu não sei se em
algum momento eu a amei de verdade!".
Relações dessa natureza são comuns entre nós. Sequestros
velados. Pessoas que, na incapacidade de compreender os limites de suas
histórias pessoais, passam a buscar nos outros os preenchimentos de suas
lacunas. Amores que não são amores. Amores que se caracterizam como
competições sórdidas, desumanas, ainda que pareçam cuidado e atenção.
Nem sempre nossas intenções são conscientes. Nem sempre
agimos com clareza. Boa parte de nossas reações e atitudes obedecem à ordem
de nosso mundo inconsciente, em que a vida passada permanece atuando e
determinando nosso jeito de ser. Tomar consciência das intenções que norteiam 
nossos atos é o primeiro passo para reorientarmos nossa conduta, retirando do
amor que amamos o poder tão destruidor que tantas vezes lhe é inerente.
Conscientizar-se de que sua história como filho que não foi
amado como deveria ter sido era a génese de sua indisposição com a mulher com
quem havia se casado foi um grande passo para a vida do jovem advogado. Não
se trata de descobrir culpados ou inocentes. Trata-se de desvendar os papéis
dos personagens da trama. O que ele não suportava em sua esposa era o que
dele nela estava refletido. Vê-la frágil e cuidada pelos seus progenitores
recordava-lhe também sua condição de homem frágil que, ao contrário dela,
raramente encontrou abrigo para se esconder.
A fragilidade da esposa lhe recordava o que nele era insuportável.
Ele também sempre foi frágil, mas nunca soube assumir
porque lhe faltou liberdade para isso. A família que ela tinha era a
família que ele gostaria de ter tido. Mas, na incapacidade de reconhecer tudo isso,
justamente por ser um processo inconsciente, ele revestiu esse desejo de uma
forma cruel de aversão, minando cada vez mais a relação dos dois.
Ao dizer "eu não suporto a família dela", aquele rapaz que já
ganhou tantas causas na vida assumia, sem saber, que a maior de todas as causas
ele já havia perdido. Aquela família era o retrato de sua frustração. A fotografia
revelava o que na sua vida sempre foi ausente. Olhar aquele quadro era
insuportável, e, por isso, o desejo de ficar distante daquela cena.
O mais sábio teria sido tomar consciência de tudo isso antes da
separação. Talvez assim teriam tido tempo para não deixar o desgaste
acontecer. Em vez de rechaçar os cuidados da família dela, ele teria se deixado
cuidar por eles também, podendo assim curar suas ausências com a família recém-
chegada. Tentaria dosar a atenção exagerada com a coragem a ser alcançada. Os
dois estavam nos extremos. Ele, na necessidade de aprender a ser frágil, ela, na
necessidade de aprender um pouco de coragem para viver sem os vínculos que
não a deixavam ir adiante. Ambos precisavam assumir um pouco um do outro.
Mas não houve tempo para essa partilha. O casamento se desfez e o fracasso se
instaurou de forma avassaladora.
Não houve tempo para o amor real. O que houve foi a
construção de uma realidade fortemente marcada pelo des conhecimento
pessoal. Relação diabólica, infértil e imatura. Ambos perderam.

EGOÍSMO

Sinto falta de você. Mas o que sinto falta é de tudo o que é
seu e que me falta.
Sinto falta de minhas faltas que em você não faltam.
Sinto falta do que eu gostaria de ser e que você já é.
Estranho jeito de carecer, de parecer amor.
Hoje, neste ímpeto de honestidade
que me faz dizer, Eu descobri minhas carências inconfessáveis
Que insisto em manter veladas.
Acessei o baú de minhas razões inconscientes
E descobri um motivo para não continuar mentindo.
Hoje eu quero lhe confessar o meu não amor,
Mesmo que pareça ser. Eu não tenho o direito de adentrar o seu território
Com o objetivo de lhe roubar a escritura. Amor só vale a pena se for
para ampliar
o que já temos.
Você era melhor antes de mim, e só agora posso ver.
Nessa vida de fachadas tão atraentes e fascinantes;
Nestes tempos de retirados e retirantes,
Sequestrados e seqúestradores,
A gente corre o risco De não saber exatamente quem somos.
Mas o tempo de saber já chegou. Não quero mais conviver com meu lado
obscuro,
E, por isso, ouso direcionar meus braços
Na direção da dose de honestidade que hoje me cabe.
Hoje quero lhe confessar meu egoísmo.
Quem sabe assim eu possa Ainda que por um instante amar você de verdade.
Perdoe-me se meu amor chegou tarde demais,
Se meu querer bem é inoportuno e em hora errada.
É que hoje eu quero lhe confessar meu desatino,
Meu segredo tão desconcertante:
Ao dizer que sinto falta de você
Eu sinto falta é de mim mesmo.

Quem Me Roubou de MimOnde histórias criam vida. Descubra agora