Violências declaradas e violência veladas

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Ato violento é tudo aquilo que atenta contra a pessoa e lhe causa danos. O contexto da violência é bastante amplo. Ela pode se manifestar de formas muito diversas, de maneira que podemos falar de violências declaradas e violências veladas.
Essas modalidades de violência, de alguma forma, são desdobramentos dos temas que estamos abordando: o sequestro do corpo e o sequestro da subjetividade.
Quando falamos de violência declarada, estamos lidando sobretudo com os atos da corporeidade. A violência explícita, sem máscaras, inegável. O corpo que sofre a violência é a prova concreta do desrespeito. Nele, há evidências de que houve uma invasão de territórios, um delito. O corpo sofre na carne as consequências da violência declarada.
Constantemente experimentamos os medos dessa modalidade. Medo de assalto, sequestro, latrocínio, acidentes; tudo constitui um quadro que contemplamos diariamente nas paredes de nossa vida.
Por outro lado, as violências veladas são as invasões sutis que não podem ser vistas com facilidade. Trata-se de um processo silencioso com o poder de minar a subjetividade humana e privá-la de sua autonomia.
Um exemplo simples que sempre me ocorre é a história de uma senhora que encontrei casualmente no aeroporto. Seguimos juntos a viagem e, depois de algumas horas de conversa, ela me contou que sempre quis ser médica, mas o pai a proibira, porque desejava que ela fosse advogada. Tentou de
tudo para convencer o pai de sua aptidão para as ciências biológicas, mas nada fez com que o pai mudasse de idéia.
Nascida num tempo em que filhos não costumavam se opor às determinações dos progenitores, desistiu de seu sonho. Estudou direito, mas nunca conseguiu trabalhar na área. Casou-se, limitou-se às atividades domésticas e acabou não realizando o seu sonho.
Esta história retrata uma forma de violência terrível. Alguém se levanta contra o sonho que não é seu e determina o destino do outro como se
estivesse determinando o próprio. Violência cruel que pode marcar
definitivamente a vida de alguém.
Violências semelhantes podem acontecer no seio da vida conjugal. São violências domésticas, posturas arbitrárias une m.ir cam as relações
no casamento, quando há a prevalência de uma das partes por meio da força
psicológica que coage e medra.
Os violentados não exibem marcas no corpo que denunciem a violência, porque não há agressão física. O que se agride é mais profundo, vai além do que nossos olhos podem ver.
Há quem exerça o domínio sobre os outros sem ao menos aumentar a voz. A autoridade, nesse caso, não passa pelos códigos que identificamos como agressividade. O que há é um processo de rendição por meio do medo e da coação. A violência velada deixa marcas no caráter, porque inibe o florescimento e o desenvolvimento da personalidade.
As relações humanas estão sempre vulneráveis aos riscos dos atos
violentos velados. Podemos identificar muitas delas, mas, neste momento,
queremos observar uma relação profundamente problemática nos dias de hoje: pais e filhos. Uma das conseqüências da grande crise de valores vivida pela sociedade contemporânea é justamente a indefinição dos papéis familiares. Se
no passado existia o risco da autoridade exacerbada, como no caso do pai que
não permitiu que a filha seguisse sua vocação profissional, hoje vivemos o risco da ausência de referencial de autoridade.
Pais que não sabem como dosar a liberdade de deixar que os filhos cresçam. Pais que não sabem realizar a intervenção necessária para ajudar a
nortear o crescimento. E a crise dos papéis. Filho já não sabe ser filho, na mesma medida que pais não sabem ser pais.
Nesse descontrole, que tem sempre como foco o desejo de acertar
— afinal, ninguém quer errar na educação dos filhos —, encontramos uma violência velada sendo praticada contra crianças e adolescentes.
Quando um progenitor permite que o filho faça o que bem entender de sua vida, uma violência terrível é cometida. Se por um lado a proibição arbitrária se configura como violência que impede o crescimento da pessoa, por outro, a permissão deliberada e sem critérios torna-se fonte da mesma privação.
Cada vez que uma criança ou um adolescente é exposto ao direito
de decidir o que ele ainda não está preparado para decidir, um ato de violência é cometido. E também violência permitir que assuntos que não são próprios do universo infantil sejam tratados na frente de crianças. E violência cada vez que uma criança é vestida como se fosse um adulto, e dela é solicitado um comportamento que não condiz com sua idade.
Expor uma criança à necessidade de ser adulto ou exigir dela a compreensão de um universo diferente do seu é o mesmo que expô-la à orfandade.
O resultado dessa violência é profundamente comprometedor na
vida daquele que a experimenta. Crianças sem limites podem se tornar adultos imaturos.
Violências veladas e violências declaradas. Violentados legitimando
o poder daqueles que os violentam. Ambos privados da relação que tem o poder de promover a dignidade e o aperfeiçoamento do humano.

Quem Me Roubou de MimOnde histórias criam vida. Descubra agora