Construindo relações simbólicas.

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O mundo começa na palavra que dizemos. A próxima palavra a ser
proferida é sempre a nova oportunidade que recebemos de mudar a história.
Palavras possuem o poder de mover as estruturas. Por meio delas vivemos o
processo da "metanóia", palavra de origem grega que significa "mudança de
mentalidade".
Uma mudança só é consistente se, de fato, a palavra alcançou as
profundezas da mentalidade. Nenhum comportamento será modificado se a mente
que o produz não estiver verdadeiramente transformada. Mudar de mentalidade é
assumir um novo jeito de interpretar os fatos, as pessoas e o mundo. Por isso as
palavras são ditas, são escritas. Para que tenham o poder de transformar as
mentalidades.
A palavra pode ser simbólica ou diabólica. Depende do contexto e
da forma como é dita. Símbolo é tudo aquilo que estabelece vínculo e que favorece
alguma forma de compreensão. Diabólico é tudo o que corta o caminho e favorece
a perda do rumo. O símbolo encurta as distâncias, porque estabelece pontes. Por ele
torna-se possível uma travessia que nos favorece alcançar outros lugares. Já o
diabólico intrinca a compreensão, torna difícil chegar ao lugar a que nos
propusemos.
O simbólico e o diabólico estão presentes em todas as formas de
linguagem. Eles não se limitam ao contexto das palavras ditas, ou escritas, mas
perpassam também o horizonte dos gestos.
Dentro dos ritos religiosos, o símbolo se presta a estabelecer um
vínculo entre o que é material e o imaterial. Uma vela, por exemplo, assume o
papel de ser ponte para nos levar ao horizonte da luz que não podemos ver, mas
que por inúmeras razões humanas queremos alcançar. Religião é o contexto do
desejo que ainda não sabemos identificar. Experiência de fé é experiência de não
saber dizer, mas que de alguma forma nos faz intuir que já sabemos.
Quando dizemos que uma pessoa é iluminada, nosso jeito de dizer
já está marcado pelo poder da linguagem simbólica. Há alguma coisa na pessoa que
nos faz reconhecer as características que são próprias da luz, mas ainda não temos
a perspicácia de identificar, por meio de uma linguagem lógica, o que na pessoa
reconhecemos iluminado.
O diabólico também está presente nos ritos religiosos. Cada vez que
a sacralidade do que queremos celebrar esbarra nos limites de nossa linguagem,
corremos o risco de dizer ou representar, por meio de gestos, o absolutamente
contrário do que gostaríamos.
A problemática do simbólico e do diabólico perpassa todo o
contexto da vida humana. Como já mencionamos, as culturas humanas são
construídas a partir de realidades simbólicas e diabólicas.
Nossas relações cotidianas também são construídas dessa forma. O
tempo todo, conscientes ou não, estamos estabelecendo pontes com as pessoas
que encontramos, isto é, estamos sendo simbólicos; ou então estamos destruindo
os lugares de travessia, assumindo assim a condição de diabólicos. Na história que
vimos anteriormente, o que prevaleceu foi a falta de linguagem simbólica.
Marido e mulher não construíram pontes, mas, ao contrário,
aumentaram as distâncias.
Falar de relações simbólicas é o mesmo que falar de relações que
nos fazem avançar. O símbolo estabelece pontes que favorecem travessias.
Passamos pelas histórias que encontramos, tocamos e somos tocados pelas pessoas
que cruzam nossos caminhos. Falamos e ouvimos, sorrimos e choramos, enfim,
toda nossa vida está constanternente contextualizada nas estruturas do simbólico e
do diabólico.
Pensar nas estruturas simbólicas e diabólicas que sustentam nossas
relações consiste em apurar ao máximo o destino que damos a nós mesmos e aos
outros. Somos o resultado final dessas duas conjugações. Ninguém consegue ser
simbólico o tempo todo, mas não creio que alguém possa ser constanternente
dominado pelos impulsos que geram o diabólico. Estamos sempre cruzando o
perigoso limiar que nos separa das duas perspectivas.
Relações simbólicas são capazes de nos fazer voltar para o que
somos. Relações diabólicas nos distanciam de nós mesmos. Podemos aqui, de
maneira simbólica, reportar-nos à temática que já apresentamos anteriormente a
respeito do conceito de pessoa.
A "disposição de si" carece o tempo todo de ser alcançada para que
o segundo passo do conceito, a "disposição ao outro", possa acontecer. Disposição
de si e disposição ao outro são duas realidades simbólicas. Nas duas formas de
disposição há uma integração necessária e fundamental sem a qual não é possível
dispor de si, tampouco ser disponível ao outro. Essas duas disposições atestam a
preponderância dos elementos do simbólico sobre nós.
É com base nessa premissa que podemos compreender que uma
pessoa será mais pessoa à medida que não abrir mão das realidades simbólicas. O
diabólico desintegra, mas o simbólico congrega. Por isso, quanto maior for o
número de relações simbólicas estabelecidas, maior será o processo de conquista de si
mesma que a pessoa viverá.
Toda e qualquer forma de sequestro da subjetividade implica
rupturas dolorosas e esquecimentos de valores. Por isso os sequestros são
experiências de relações diabólicas. Não oferecem pontes, mas, ao contrário,
cortam as comunicações, impedem travessias e superações.
A prevalência de relações diabólicas, em detrimento de relações
simbólicas, provoca um empobrecimento considerável do mundo, uma vez que
um mundo diabólico é um mundo que impede os encontros, em vez de
proporcioná-los.
Estabelecer uma luta contra as estruturas que diabolizam o
mundo consiste em quebrar os cativeiros da mentalidade que nos ensinou a
reproduzir, nas pequenas relações, as estruturas do diabólico. Insensibilizados,
nem sempre estamos dispostos a estabelecer pontes. Conseqúentemente, nós
vamos cavando nossa própria solidão, gerando um mundo cada vez mais
desprovido do poder transformador das realidades simbólicas.
Quando deixamos de ser simbólicos, a solidão cresce no mundo.
E, o pior, cresce a partir da nossa solidão. Se em vez de construir pontes nós as
destruímos, de alguma forma estamos provocando o nosso isolamento. Não é
apenas o outro que está privado de nossa presença, mas nós mesmos,
sobretudo.
O fechamento é uma forma de suicídio. A opção por tudo
aquilo que no mundo é diabólico é uma adaga que empurramos lentamente no
peito. É um jeito de morrer aos poucos. É um jeito de assumir a solidão mais
profunda, a "ausência de nós mesmos". Aquela solidão que, mesmo quando
estamos acompanhados, ainda assim não deixa de existir.

BANQUETE

Que o seu chegar seja mais que um
simples chegar. Que seja o símbolo de um tempo
de demoras e permanência. Deitarei a toalha branca sobre a mesa e permitirei que
suas pontas venham
cobrir também a minha alma.
Cada vez que nossa mesa é posta,
muito mais que um alimento,
a vida nos é oferecida!
Que seja assim.
Que nossa fome de amor
e de fraternidade seja sempre saciada
nos olhares dos quais nos serviremos.

Quem Me Roubou de MimOnde histórias criam vida. Descubra agora