(Parte 18)

100 14 1
                                    

          Semanas haviam se passado desde o último desgosto que eu dera aos meus pais. Cecílie tentou interagir comigo pela última vez naquele dia em que lhe confidenciei que não poderia me abrir com ela. Oswald foi o único a querer me incluir em sua vida e, talvez por remorso, deixei que ele me contasse sobre sua rotina e trocamos palavras sobre meia dúzia de assuntos. Quando tentou descobrir o que vinha me aborrecendo, desviei do assunto e pedi sua ajuda em algumas coisas. Um pouco de mão à massa me deixaria ocupada e em movimento, livrando-me de desejos nada sadios.

          Em poucos dias, conseguimos matricular Evie na escola, comprar seu novo material e uniforme, assim como ele decidiu providenciar um quarto para mim, com um colchão novo e tudo mais.

— Mesmo que eu não saiba quanto tempo vai ficar, o mínimo é você ter sua própria cama. Só Deus sabe quantos gases deixei escapar naquele estofado. — Seu comentário bobo e inesperado fizera meu dia. Ri por longos segundos até os músculos da barriga doerem.

          Consultara também um médico para que ele pudesse me prestar um maior auxílio a respeito das minhas fraturas. As dores ainda se faziam presentes, mas em menor constância. Prescrevera um novo analgésico e afirmou que meu progresso era o aguardado. O lembrete físico da minha ruína, ao menos, se desvanecia com o tempo que eu sentia que perdia. Os pesadelos, por outro lado, não seguiam o mesmo caminho. Em meu novo quarto de paredes abafadas, meu medo e meus gritos noturnos eram sufocados para que ninguém pudesse me socorrer no meio da noite. O que pensei ser uma dádiva, pois a atenção poderia ser ainda mais esmagadora do que a solidão.

          Eu tinha a mim, pelo menos. Conseguia pegar minhas dores e aliviá-las fisicamente, funcionava na maioria das vezes. Ou poderia pegá-las e juntar forças para sobreviver a mais uma hora, mais um dia. Fazer o que era esperado de mim. Continuar aquela caminhada, que ao meu ver era sem sentido, e mostrar para meus pais e Evie que eu estava bem. Sorria se fosse preciso, escutava minha filha contar sobre seu dia, sobre suas novas amizades na escola e até mesmo sobre as novas compras do meu pai na mercearia. Responder um sim a minha mãe, claro que eu adoraria um café. Ajudá-la na cozinha ou na casa e até mesmo no jardim. As duas sempre em silêncio quando no mesmo lugar. Às vezes era doloroso ter que esperar o anoitecer para voltar para a cama, outras, conseguia pegar algumas partes do dia e, se fizesse recortes, seria capaz de classificá-lo como perfeito.

          Quando Kris voltara de viagem, ficou sabendo da minha travessura, como classificou, com as outras e brincou dizendo que não queria ter perdido a cena. Por ainda me sentir humilhada com a atitude de minha mãe em relação ao episódio, ignorei sua mensagem e todas as outras que se seguiram. Com sua imensurável insistência, não demorou muito para que colocasse seus pés no tapete da entrada, mas pedi para que meu pai o dispensasse. Mesmo com uma preocupação marcada em seu semblante, fizera o que eu disse. Ao fechar a porta, virou-se para mim e perguntou se algo estava errado, recebendo como resposta apenas um acenar de cabeça e um meio sorriso.

          Em meu celular, recebi mensagens de Karine reclamando sobre as fofocas a nosso respeito e agradecendo aos céus por seu marido ainda estar fora da cidade. Até o dia em que ele voltasse, outros assuntos estariam percorrendo as más bocas e ela não precisaria se preocupar com explicações para o marido. Em uma de suas ligações, me convidou para uma reunião de seu clube do livro, ao que eu recusei gentilmente, explicando que ainda tinha uma lista enorme de coisas a fazer. Não era bem uma mentira, eu tinha assuntos pendentes, apenas não queria lidar com eles tão cedo. Além do mais, acreditei que "clube do livro" era somente uma desculpa para se juntarem, beberem e jogar conversa fora. E, como eu havia me prometido, ficaria na surdina por um tempo. Não era justo com meus pais, especialmente com Cecílie, que eu morasse debaixo de seu teto e continuasse com comportamentos que ela despreza.

Um pedaço de mimOnde histórias criam vida. Descubra agora