(Parte 21)

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          Os tufos no ralo da pia marcavam minha primeira mudança. Um corte em mim fora proferido, mas um que não ficaria marcado em minha pele para me relembrar de uma recaída. Olhei para frente e suspirei aliviada com meu reflexo, afinal, não era de todo mal. Os primeiros movimentos foram feitos com o próprio barbeador, que cumpriu minha necessidade de forçar o sentimento ruim para fora do meu corpo. Ao ver que precisava de mais, me abaixei novamente na altura do armário e alcancei a tesoura que meus pais guardavam no banheiro. O novo corte de cabelo poderia significar um novo grito por socorro, mas ver as pontas batendo acima dos meus ombros era de um alívio imensurável.

          A leveza que senti em seguida foi um presente divino, compatível com uma tarde na praia observando o pôr do sol se esconder atrás da infinitude do mar. Sorri ao olhar meu novo corte de cabelo e, percebendo que poderia contar com alguma ajuda para finalizar meu feito, gritei por minha mãe. Quando a mesma abriu a porta e olhou todos aqueles fios espalhados e fazendo uma bagunça em seu banheiro impecável, seu queixo foi de encontro ao chão.

— Você enlouqueceu? — Fora sua reação. E eu poderia ter ficado ressentida, magoada e até mesmo irritada com seu comentário, ao invés, fiz minha melhor pose de modelo profissional e andei de um lado para o outro, no pequeno espaço, balançando a cabeça e com a mão na cintura.

— Você gostou? — Perguntei movimentando os fios para trás com as mãos, tentando criar um efeito estonteante (ao menos na minha cabeça).

          Cecílie, enfim, percebeu que sua filha talvez não estivesse tão perdida assim, e riu da cena a qual eu protagonizava com um certo orgulho.

— Parece que estou entrando no seu quarto há trinta anos atrás e encontrando você cortando metade da sua franja fora. — Comentou enquanto adentrava o banheiro e, como se adivinhasse o que eu iria pedir, me guiava para me sentar no chão para que ela pudesse igualar minhas pontas.

          Aquela situação valeu mais que ouro para mim. Ter um momento mãe e filha fora uma benção, uma verdadeira reconexão entre nós duas. Seu toque gentil no meu cabelo era um gesto que mostrava o quanto nosso laço maternal ainda estava intacto. O fato de achar graça de minha "loucura", como chamou, significava que, mesmo ela tendo provas concretas de que sua filha não era mais a pessoa que um dia ela acreditou ser, eu ainda estava lá, perdida em algum canto. Minhas brincadeiras de pedir para ela me transformar na próxima garota propaganda da franquia de mercados de Floratta Bay e suas risadas que se seguiram desde então era uma confirmação de que, se lutássemos, poderíamos reconstruir todo o respeito e a relação saudável que deveria ter sempre existido entre nós duas.

— Agora só o que precisa fazer é mudar a profissão no seu currículo. — Disse enquanto eu olhava o que tinha feito. Sem que eu pedisse, minha mãe arriscara um corte moderno no meu cabelo, no qual as pontas na frente do rosto eram um tanto quanto mais longas que as de trás.

          Quando me olhei no espelho, o susto havia sido grande. Meu cabelo então batia em meu pescoço, tirando-me dez anos da identidade e colocando um júbilo em meu rosto que não precisava contar ao menos com meu esforço.

— Mãe, isso... É demais! — Virei-me para ela e a abracei apertado, não me importando de estar a enchendo de cabelo picado. — Muito obrigada. — Sussurrei em seu ouvido, recebendo um beijo em retorno.

— Você é uma linda e magnífica mulher, Olívia. Às vezes você só precisa se lembrar disso. — Eu estava emocionada. Mesmo a tratando porcamente todos esses dias, minha mãe ainda tinha muito o que dizer de mim.

          Queria falar que eu sentia o mesmo por ela; que toda minha força eu consegui ao observá-la e que, se eu era alguém que respirava e amava naquele momento, eu devia muito disso a ela. "Você pode alcançar o céu um dia, minha filha. Se você quiser, mova todas as terras para tocá-lo", ela dizia. E mesmo sentindo que tinha sido queimada pelo sol, todo o esforço que fiz para chegar onde estava tinha sido gratificante. E era exatamente isso. Eu estava grata.

Um pedaço de mimOnde histórias criam vida. Descubra agora