Meu país estava lá, estampado na vitrine de vidro. Mostrava-se bom abrigo, bonito.
E então ouviu-se um estrondo
Era tiro, veio lá do morro
Daquele povo bobo que se põe a larapiar
A liberdade alheia
Pois sua condição o levou a conclusão
De que ele, nessa sociedade, não tem mais lugar.
E uma bala perdida acertou a Catarina
Filha da Marina
Ela estava na escola
Esperando o professor (aquele que nunca chegou)
E no meio do pátio, caiu urrando de dor.
E um funcionário foi socorrer
Fez de tudo para que a vida a menina não viesse a perder
Levou-a ao hospital
Lá, fila de gente passando mal
"Não tem quem atender Catarina, a culpa não é minha"- disse a atendente
"Mas a menina não para de sofrer"- choramingou o homem. "Eu não tenho o que fazer"
Bum
Uma senhora cai ali do lado
Lá vem seu Geraldo todo preocupado
Mas do que adianta?
Não tem maca, remédio, ação
Mas tem assédio
Bem na esquina
Aconteceu com a Nina
Que desceu do ônibus assim que ele quebrou
Abaixou para pegar o livro que caiu
E o que aconteceu depois, quem tava do lado fingiu que não viu.
Um garoto tocou em seu corpo
Se aproximou e não pediu licença
"Vem comigo agora e não precisa ficar tensa"
Levou ela para um canto escuro e ali a tirou tudo
Roupa
Dignidade
Liberdade
feriu a alma
Mas calma, calma. A história não acabou
Do outro lado da cidade o filho do PM esperneou
Passou no jornal que o pai foi sequestrado, amarrado e esfaqueado. Notícia rápida, o que dava audiência era o viaduto que o candidato não "construiu"
Aquele que prometeu no dia primeiro de abril.
E o candidato fazia festa "Eu sempre cumpro minhas promessas"
E o morador de rua que passava em frente a um bar
Escutou a notícia
E pensou na vida fictícia que poderia ter com a esposa Leticia se tivesse a oportunidade e o prato de arroz com feijão, que só viria com a abolição daquele apartheid social.
Leticia tinha 17 anos, dois filhos e, como já foi dito, um marido. Foi expulsa de casa, onde já se viu ser tão dada? Menina abusada, tem que se calar. Como teve coragem? Mas não pode abortar, morte de criança não dá.
Mas dá Leticia na clínica clandestina, sem nenhum direito a morfina, na mesa de ferro gelada, tendo mais um filho sem nem ter a própria vida paga, mais um que vai para as ruas virar o bandido que você diz já não aguentar e quer matar.
A jovem não teve informação, ninguém falou nada sobre sexo sem proteção
O senhor estava no sofá de casa, sabia de tudo e não sentia aflição. Não estendia a mão para dar uma migalha de pão pra esse povo guerreiro que sangrava e ainda sim amava nossa podre nação
Já não é mais assim, eles não toleram mais o senhor e nem a mim.
E esse grito sem resposta
Já virou aposta
No meio dessa dor exposta.
A vitrine quebrou
E o Brasil desmoronou.
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Relicário
PoetryLetras que formam sílabas, palavras que escorregam pela boca, sentimentos que não podem ser esquecidos. Relicário é uma mistura de versos sobre amor, dor, ansiedade e sonhos. Fala sobre quem eu sou e quem você é. Sua curtida e seu comentário ajudam...