Antes: arché

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Essa parte destoa do estilo da história. A narrativa não é nesse estilo, mas eu não quis começar sem dizer como se conheceram, então coloquei essa espécie de flashback/primeira cena ^^

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Foram poucas as vezes em que realmente vimos ou ouvimos. Na grande maioria das vezes, eram apenas histórias ou boatos sobre um povo que vivia sob as águas. Vez ou outra, um dos homens da água vinha à superfície. Seus feitos maldosos fizeram com que se instaurasse a ideia de que eram maus por natureza, animais que saem à caça e que, conosco, se parecem pouco.

As pessoas que espalharam isso não se lembraram que todo povo infelizmente tem pessoas que escolhem fazer o mal. Na nossa vila também. Infelizmente, os mercenários que saíam para tentar levar tesouros da terra firme ou cometer atrocidades foram os que chegaram a nós.

Pelo menos, era isso que eu havia ouvido até então. Em meus 19 anos de vida, nunca um homem da água havia visitado a vila de pescadores onde moro.
Foi em uma manhã quente de verão de 1956. A monção da noite anterior havia derrubado árvores e feito as ondas subirem a metros de altura.

Antes do nascer do sol, meu pai partiu para o alto mar afim de buscar todo o peixe que podia junto com os outros homens, enquanto minha mãe partiu para o posto de saúde, onde trabalhava como enfermeira.

O feriado municipal da cidade onde curso enfermagem me permitiu mais algumas poucas horas de ar puro e pés descalços na areia da praia.

O céu não poderia estar mais azul e as nuvens pareciam ter sido desenhadas com tinta farta. O mar que outrora rugia, agora era calmo e bailava, indo e voltando com gentileza. A espuma branca que tocava meus pés partilhava de sua gentileza, me saudando a cada poucos segundos.

As aves festejavam sobre o que outrora fora palco de destruição, levando para sabe Deus onde as frutas que estavam espalhadas pelo chão em meio aos galhos e restos de objetos que o vento havia carregado.

Ao chegar perto de uma grande rocha que iniciava na praia e adentrava o mar, contornei-a pela areia. Então, algo me chamou atenção.
De rabo-de-olho, uma mancha negra e cumprida. Conforme virei a cabeça, pernas. Uma pessoa inteira. Desacordada.

Girei meu corpo totalmente, em um susto, dando um passo à frente e petrificando logo em seguida.

Meus olhos pousaram em seu pescoço marcado por três grandes riscos. Guelras.

Suas roupas, em uma só peça, cobriam quase que todo o seu corpo, deixando apenas mãos, pés e pescoço para fora. Era como uma roupa de mergulho totalmente preta, mas com partes robustas. Talvez fosse uma armadura adaptada para nado?

Forcei meu corpo para voltar correndo de onde vim. Quis ir embora imediatamente.

Contudo, aquela pessoa desacordada e tão frágil não parecia em nada com o que as histórias diziam.

E mesmo se fosse, eu não sou. Não poderia simplesmente ignorá-lo. Pensei em chamar ajuda, mas iriam, no mínimo, executá-lo ali mesmo.

Então resolvi por a faculdade de enfermagem em prática. Caminhei devagar até o que parecia ser um homem e me ajoelhei. Analisei seu rosto inexpressivo, procurando por qualquer sinal de alerta à minha presença. Nada. Ergui dois dedos meus e levei-os até sua jugular, pressionando-os levemente.

Assim que senti uma única vibração, recolhi minha mão em um reflexo. Ele estava vivo.
Também em um reflexo, ele usou a mão esquerda para segurar minha mão e com a direita tirou uma adaga, apontando-a para mim.

— Eu só queria ajudar! — Adiantei, sentindo meu coração acelerar loucamente.

Segurou por mais um ou dois segundos, antes de me soltar. Recolhi minhas mãos, afastando-me.

— Perdão — murmurou.

Ergui meus olhos em mais um susto. Assisti-o guardar a adaga e se levantar com alguma dificuldade.

— Você fala a minha língua! — Pensei mais alto do que deveria.

Ele me encarou com reprovação, como se aquilo fosse óbvio. Os olhos se estreitaram, destacando-se.

Os olhos claros que contrastavam com a pele negra se focaram em mim por breves segundos. Ele desviou os olhos para outra direção, erguendo uma das mãos para ajudar-me a levantar.

— Sim — foi o que saiu de seus lábios. Assim que segurei sua mão e me levantei, ele disse baixo e calmo: — não ande sozinha pela praia, moça da terra firme. A tempestade de ontem soltou muitos prisioneiros e vários ainda não foram localizados.

— Tudo bem... — foi tudo o que saiu.
Então era aquilo que ele estava fazendo ali? Então eu estava falando com algum tipo de policial subaquático?

Era tanta informação. Céus, eu estava falando com um homem da água!

Minha surpresa não foi suficiente para que eu não visse, de canto-de-olho, um objeto metálico voando em sua direção.

— Cuidado! — Gritei, puxando seu ombro em minha direção e fazendo-o se abaixar. Assim que ele percebeu o que havia acontecido, se virou na direção de onde havia vindo o projétil.

Ele saltou no mar e nadou para a direita, enquanto eu contornei a pedra pela praia para acompanhar.

Assim que cheguei perto, vi-o golpeando uma pessoa com guelras na área do pescoço. Chegando mais perto, vi que era um homem e que havia caído desacordado.

Então, o policial que eu acabara de conhecer atou-lhe as mãos com um fio que reluzia em dourado. Percebendo minha presença, disse:

— O fugitivo irá sobreviver. — então caminhou até mim. — Muito obrigado por ter me salvado, estarei sempre em dívida com você, moça da terra firme.

— Não seja tão formal — respondi nervosa, sentindo minhas bochechas queimarem. — Eu só berrei e te empurrei. — Desviei o olhar, reprimindo um sorriso envergonhado. — E eu sou Verônica Boaventura, a propósito.

— Você não tem ideia do que fez pela segurança de nossos dois povos, Verônica — devolveu o sorriso. — Sou Kaldur'Ahm.
Enquanto ele se virava e arrastava o outro homem desacordado mar a dentro, dei pequenos passos na direção deles, mas parei assim que encostei os pés na água salgada.

Foi em uma manhã quente de verão em que, pela primeira vez, encarei os olhos brilhantes de Kaldur'Ahm. Céus, como eram brilhantes aqueles olhos.

Quando ele foi embora, todas as coisas brilhantes hibernaram esperando a sua volta.
Naquele dia, eu nem sabia disso: apenas senti algo estranho. Mas hoje eu sei. Hoje eu sei que, depois daquele dia, eu esperei por todos os dias o retorno dele.

Kátharsis // AqualadOnde histórias criam vida. Descubra agora