CAPÍTULO VII

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            Às vezes as mentiras são como o vírus da varicela (catapora): se você for contaminado uma vez, este permanecerá no seu corpo pelo resto da vida e durante o tempo em que você está com isso, passa para todos ao seu redor. Mas há uma diferença entre as duas: ninguém pode ficar imune à mentira, ela é um vírus que se propaga diariamente e sua única “vacina” é a verdade. Esse vírus é muito pior quando alguém pega e você vê que esse alguém está transmitindo-o para todos que não tinham se vacinado com a verdade. Isso era exatamente o que estava acontecendo comigo: as pessoas estavam propagando a mentira que eu possivelmente poderia ter matado meus pais, as pessoa que eu sempre amei, que me deram um lar e que me educaram da melhor forma possível. Todos que foram expostos àquele vírus o adquiriram sem nem mesmo questionar. Doía em mim saber que agora eu era suspeito de algo tão infundado, eu tinha apenas 15 anos, como teria feito tamanha brutalidade? Quais seriam as provas que levariam os policiais a pensarem dessa forma? Minha vida se tornou um poço de questionamentos sem respostas.
              No fundo eu  ainda sentia que meus pais estavam vivos, mas a razão dizia que eles não estavam. Meus sentimentos começaram a se sobrepor, deixando-me confuso sobre o que eu deveria sentir. Cultivar esperanças já não era mais uma opção, pois a única coisa que me era cabível seria esperar não ser preso ou levado para um reformatório.
                Nada estava sendo como eu tinha planejado para aquela época do ano, todos meus sonhos e desejos foram levados junto com a tempestade que se instalou na minha vida.
           Daquela hora até o fim da tarde eu tentei ao máximo me acalmar, pensei “talvez tenha sido apenas um engano”, claramente isso não me tranquilizou. Ficar daquela forma me deixou faminto, então eu comi tudo que havia restado na cesta que ganhei. A geladeira da minha casa já estava ficando vazia, já que não era abastecida a muitos dias, só restavam comida suficiente para 2 dias no máximo. Deitei-me na cama e lá fiquei até quando deu meia noite, a madrugada estava muito quente, tão quente que até me fez suar bastante. Não me senti incomodado com esse fator, mas após ter fechado meus olhos a primeira vez, acordei, pelo menos, umas 10 vezes. Quando isso acontecia, eu rodeava a casa inteira e olhava para fora pelos vidros das janelas, mas não havia nenhum sinal de vida.
            Quando finalmente amanheceu, fiz um leite e comi algumas frutas como maçã e uvas, poucas, já que meu estoque já estava quase no fim. A ideia de ir para a escola passou pela minha cabeça, mas foi completamente apagada quando lembrei do rosto de Alice. Uma ideia extraordinária veio a minha cabeça, agora eu poderia ser meu professor de todas as matérias, eu me ensinaria da melhor forma possível, a alegria voltou a querer surgir, mas o fato de que tudo que eu sabia sobre as coisas eu aprendia com outras pessoas me fez lembrar que eu só posso me ensinar o que eu já sei, logo eu não me ensinaria nada!
            Fiquei a manhã inteira entediado, não tinha nada para fazer já que eu havia quebrado a TV quando fiquei irado com meus pais. Sentei-me no sofá, bem no centro — para não quebrar a promessa que eu e meus pais fizemos de que cada um teria um lugar permanente no sofá, o meu era no meio dos dois —, olhei para onde antes ficava a TV e imaginei o que estaria passando naquela hora. Lembrei dos programas que nós três assistíamos até tarde na TV, riamos muito, às vezes não precisava de piadas para que isso acontecesse, já que passar a noite daquela forma já nos deixava suficientemente felizes para rirmos sem motivo. Um riso salgado preencheu meu rosto, as lágrimas que desciam materializaram tristeza e alegria. Naquele momento jurei a mim mesmo que nunca mais culparia as minhas lembranças pela tristeza que habitavam minha mente — mas em menos de um ano aquela promessa seria quebrada.
           Como de costume, a campainha tocou e me trouxe de volta para terra. Gritei “só um minuto” e fui lavar meu rosto na pia mais próxima, aproveitei para arrumar meu cabelo  — acho que não especifiquei como meu cabelo era naquela época, então aqui vai uma descrição: meus cabelos eram, sim ERAM, enrolados, eu deixava ficar grande em cima e cortava no mínimo dos lados, observa-se que não era necessário arrumar, já que meu “topete” já era “perfeito” por si só. Abri a porta e toda paz que eu sentia naquele momento pareceu sair por ela, pois lá estavam Alice e Paulo Bloom Clair, juntos a beira da minha porta, desejei não ter mãos para que eu não tivesse aberto aquela porta, mas meus desejos não eram realizados a muito tempo e a porta já estava aberta, ambos disseram como num coral: “Bom dia, garotinho/garoto”. Senti que ia cair duro no chão, mas esse sentimento foi trocado pela vontade de enfrentar aquelas pessoas tiranas. Então eu respondi:
— O dia estava bom até minutos atrás — sorrisos de deboche se abriram nos rostos deles — O que vocês vieram fazer aqui?
— Viemos visitá-lo, ué. Não é óbvio? — disse Alice.
— Trouxemos comida para almoçarmos juntos - disse Paulo com um sorriso de canto de boca.
— Não quero a sua comida. Vocês já podem ir  — fiquei com medo daquilo ter veneno ou algo que me deixasse inconsciente, sem contar que comer com pessoas que você não gosta não é algo bom.
— Não precisamos da sua permissão, garotinho, entraremos agora mesmo! E cuide de se sentar conosco a mesa.
             Alice pareceu conhecer minha casa como a palma de sua mão já que se encaminhou diretamente para a mesa e buscou pratos e talheres sem complicações — por sorte eu não tinha quebrado nada daquilo. Meu corpo se encheu de ódio, queria expulsá-los de lá mas eu não tinha moral suficiente para tamanha façanha.
              Senti-me impotente sobre aquilo e isso me deixou também com ódio de mim mesmo. Eu fiquei parado segurando a porta enquanto eles preparavam a mesa, meu corpo paralisou e toda força tinha ido para minha mãos, que se fecharam para suportar aquilo, mas violência não era meu tipo, então eu apenas me tranquilizei, fechei a porta e lutei contra mim mesmo pelos bons modos, talvez aqueles dois pudessem falar algo sobre a prova que possivelmente me incriminava. Eu me convenci de que eu podia suportar aquilo e que logo tudo chegaria ao fim.
             Sentamos-nos, havia apenas três cadeiras — mas a mesa tinha na verdade  quatro, uma foi quebrada por um jovem raivoso (eu) — para nós três, ou seja, estávamos perfeitamente distribuídos, o almoço consistia em frango assado, arroz, macarrão e salada, ele fora trazido em vasilhas que Alice tirou da bolsa que carregava consigo. Enquanto ela andava de lá para cá fazendo ecoar pela minha casa o som de seus saltos, eu pude ver que ela e o suposto irmão tinham muito em comum, como a cor do cabelo, da pele e dos olhos, formato do nariz e da boca, pareceriam gêmeos se não fosse pela cara meio enrugada que Paulo tinha — talvez tenham sido genes muito bons. Quando finalmente todos estavam quietos e na mesa, comemos calados — eu não pude deixar de comer aquela comida, mesmo que eu achasse que lá tivesse algo ruim —, havia trocas de olhares mas os únicos sons eram dos talheres, o silêncio foi tanto que até deu para ouvir Alice mastigar, mas quando ela percebeu, tentou reduzir o volume.
           Para quebrar o silêncio, falei:
— Vocês são mesmo irmãos? — Alice respondeu depois de engolir o que estava mastigando:
— Sim, somos. Irmão gêmeos, aliás.
           Ela respondeu tão tranquilamente que até pareceu que ela tinha alguma educação, fiquei muito assustado por ela ter revelado aquilo tão rapidamente. Continuei a puxar conversa:
— Essa comida está muito deliciosa… Onde vocês compraram? — Alice respondeu:
— Não compramos, você está louco? Eu mesma fiz. Sou uma ótima cozinheira.
           Ao saber quem preparou o que eu estava comendo, comecei a cuspir tudo no prato, fazendo uma cara de nojo. Paulo riu do que eu fiz, então eu também comecei a rir. Alice estava com uma cara de raiva e fixou seus olhos em mim, mas nada disse e nada fez.
           Fomos para o jardim depois de um tempo, o meu ódio já estava de lado, senti-me entre amigos enquanto eles não falavam nada, mas uma vez sentados no jardim, eles me fizeram lembrar porque os odeio.
— Bem, garotinho, nós não viemos aqui somente para comer, isso podíamos fazer em qualquer lugar. Viemos para falar sobre seu futuro! Como você bem sabe, foram encontrados corpos que possivelmente sejam seus pais, acontece que agora esse “possivelmente” é mais forte, porém não há cem por cento de certeza ainda. Sabendo disso, você deverá concordar comigo que uma criança não pode morar sozinha. Acho que meu irmão… Desculpe, meu colega aqui já disse para você sobre o orfanato C.C.D.A, pois é, é para lá que você será levado, assim que houver certeza suficiente sobre a morte de seus pais.

Dobra D'água 1: A NascenteOnde histórias criam vida. Descubra agora