CAPÍTULO III

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         Perder alguém querido deve ser ruim, mas achar que perdeu é pior. Seus pensamentos são sobrepostos a todo momento por ideias que se contradizem. Você pode tentar ter esperança, mas esta é abalada pelo tempo, quanto mais tempo você passa sem notícias, mais difícil é persistir com a ideia de que eles podem, sim(!), estar vivos. Sua cabeça pode tentar focar no que você quer, mas a realidade é dura e às vezes a luta do seu coração contra seu cérebro pode afetar todo seu corpo.
           No mesmo dia em que descobri sobre meus pais, alguns amigos meus iriam para minha casa de tarde e eles foram, mas não foi bem uma visita. Eles tocaram a campainha, quando eu fui atender eles já tinham corrido e deixaram em minha porta uma caixa de chocolate. Apanhei a caixa e levei para dentro, coloquei em cima da mesa, me sentei, abri e olhei todos os doces disponíveis, aquela foi uma das melhores coisas que me aconteceram naquele período - e mal eu sabia que seria única por um bom tempo -. Quando comecei a comer os doces, lágrimas começaram a cair, de forma que nem eu sabia porque eles estavam ali, elas fizeram dos meus doces comidas amargas, porém comer os doces me fazia bem de uma forma que não sabia explicar. Após o terceiro chocolate, abri a embalagem de todos e comecei a comer feito um animal, simplesmente porque eu queria me sentir bem, mesmo que por alguns instantes...
         Passado um dia após a descoberta sobre o suposto desaparecimento, meu corpo ainda estava meio estonteado e tudo que eu estava apto para fazer era dormir. Eu sabia que alguma hora teria que enfrentar a verdade, mas aquela não era a hora, não para mim, não para meu corpo, mente, coração e alma.
          Ainda era de manhã cedo quando o telefone da minha casa tocou e me acordou, atendi, com a esperança de que fossem meus pais ao telefone, me ligando para dizer que estava tudo bem e que logo eles estariam em casa, mas na verdade era a Alice - meu dia não podia começar pior  -, ela disse:
— Bom dia, garotinho, estou perdendo meu precioso tempo para lhe informar que em menos de 48h um assistente social irá visitá-lo para saber sobre sua situação e talvez até levá-lo para um lugar mais correto e seguro para crianças como você. Nem pense em pisar novamente na escola ou em me ligar sem minha permissão. Espero que fique claro que só quero seu melhor. Algum dia irei aí para lhe levar alguns biscoitos caseiros. Passar bem.
       Eu queria quebrar aquele telefone, mas imaginei que isso não era o que meus pais iriam querer que eu fizesse. Ela esqueceu de desligar o telefone e eu pude ouvir ela rindo “Hi hi ki ki”, a risada mais debochada e feia que já ouvi. Não pude me conter a isso e disse:
— Senhorita Alice, estou ouvindo suas risadas, por favor, acabe essa ligação — em seguida houve um longo barulho irritante, coloquei o telefone em seu devido lugar e me joguei novamente na cama.
          A fome atacou e não me deixou voltar a minha realidade alternativa. Ela me obrigou a levantar e ir atrás de algo para comer. Meus dotes culinários naquela época eram básicos - bem básicos -, meus pais diziam que era necessário que eu soubesse pelo menos fazer arroz, então minha refeição se baseou em arroz cozido meio sem sal, mas comestível, e como sobremesa frutas como uvas, laranjas e bananas. Tentei novamente me deitar para dormir, senti que isso já estava sendo muito repetido, então decidi sair de casa, explorar meu bairro, quem sabe até achar meus pais na casa de algum vizinho.
       Assim foi feito; me levantei, tirei meus materiais escolares da mochila e coloquei uma garrafinha com água gelada, frutas e um protetor solar que achei no quarto dos meus pais. Tomei um banho rápido, vesti roupas leves e calcei o tênis branco que minha mãe tinha me dado no meu aniversário de 12 anos - não cabiam em mim na época -, talvez essa não tenha sido uma das melhores decisões; tocar naqueles sapatos me fez lembrar de cada toque carinhoso que minha mãe já tinha me feito, de cada cafuné que só ela sabia fazer, daqueles que me faziam dormir depois de alguns instantes. Lembranças são as verdadeiras raízes do problema humano, sem elas não haveria sofrimento.
      Coloquei meu boné e comecei numa nova jornada, esperando que o destino traçasse o meu caminho. Primeiramente, abri meu melhor sorriso para meus vizinhos, tentando parecer o mais convidativo possível. O Sr. Clay foi o primeiro, ele sorriu e me ofereceu seus biscoitos caseiros, aceitei e pedi para entrar em sua casa para beber água - não custava nada conferir se meus pais estavam lá -. Tentei entrar em todas as casas da rua, e em nenhuma, das que eu entrei, encontrei meus pais. Mas não desisti, continuei, apenas parei depois de uma hora, para “reabastecer”, passei protetor solar, mordi uma maçã e bebi um pouco de água. O calor estava começando a me afetar, senti minhas costas molhadas, mas não pensei em voltar para casa, apenas prossegui, olhando para cada canto das ruas.
       Era um domingo, mas parecia mais uma segunda, tudo estava tranquilo e parecia que todos estavam ocupados demais para abrir as janelas de suas casas. Percebi que meu bairro tinha muitas árvores e que não havia um só cachorro pelas ruas, algo triste para mim naquele momento, pois eu estava escasso de carinho e queria que alguém - mesmo sendo um animal  - que sentisse o mesmo que eu fosse beneficiado por boas ações vindas de mim. Passei pela frente da escola, imaginei como seria quando eu tivesse que voltar lá, de que forma eu contaria a todos sobre o que aconteceu. Pensar nessas coisas me fez perder meu equilíbrio novamente, sentei na calçada e fiquei lá até me recuperar. Eu me levantei e decidi voltar para casa. O caminho foi calmo e senti que tudo poderia ficar bem, pelo menos até chegar lá.
           Meu lar doce lar não era mais assim tão doce, quando entrei lá pela segunda vez após a notícia, vi que estava tudo bagunçado. Isso com certeza não alegraria meus pais quando eles voltassem, prometi a mim mesmo que eu deixaria aquela casa como uma nova, jurei que a partir daquele momento eu teria uma esperança inabalável, mas antes de tudo, eu  tomaria um banho. Entrei no banheiro e abri a torneira da banheira - nada como um banho relaxante antes de serviços domésticos -, quando ela estava cheia, fechei a torneira e tirei minha roupa - banheiras foram inventadas pelos deuses -, relaxei na água fria e forcei meus olhos a se fecharem. Não durou nem mesmo meia hora esse relaxamento, acordei já preparado para o serviço. Sai da banheira, fui para meu quarto e me enxuguei, vesti minha roupa mais desgastada e então realmente comecei a cumprir minha promessa.
           Se há alguma coisa que eu aprendi naquele dia é que viver sem meus pais por perto é viver para trabalhar. Minha casa era aparentemente arrumada, mas quando eu comecei minha “faxina” pude ver como sou bagunceiro. Fiz uma terceira promessa: nunca mais eu seria desleixado, a partir daquele momento eu seria um filho melhor - só faltava ter meus pais de volta -. Cada objeto daquela casa era uma lembrança vivida, cheia de cores e sentimentos. Arrumar o quarto dos meus pais foi, absolutamente, o mais difícil, era como lutar contra a minha própria vontade, eu não queria que nada naquele quarto fosse mudado, pois aquilo era para mim relíquias, como fósseis são para os cientistas,  mas minha promessa não seria totalmente cumprida caso toda aquela bagunça ficasse lá. Vasculhando entre as gavetas de roupas, senti algo cortar meu dedo, rapidamente fui atrás do autor desse delito. Era apenas um pedacinho de papel, com o final de um recado escrito com a letra da minha mãe, ele dizia:

“Adeus. Boa sorte querido.

Com amor, sua mãe”

       Algumas vezes pequenas coisas podem destruir tudo ao seu redor. Como é o caso desses papel, que destruiu toda minha esperança, a dor do corte causado por ele não era maior que a dor causada pela frase que continha. Depois da milésima vez, eu ainda não estava acostumado a ficar sem ar ou equilíbrio, eu estava esgotando meu estoque de lágrimas. Daquela vez, ao poucos, minha tristeza se tornou raiva, peguei a primeira coisa que vi em minha frente e lancei-a contra a parede, depois baguncei tudo que vi, cada objeto quebrado era um soluço de tristeza. Depois de um tempo lançando várias coisas, comecei a gritar e chorar ao mesmo tempo, até que me deparei na sala, jogando a TV no chão. Vi como aquilo foi desnecessário, me lancei ao chão, não me quebrei, mas boa parte de mim já estava despedaça a um bom tempo. O choro se intensificou ao ponto de quase me asfixiar.

     Subitamente, a campainha tocou e interrompeu meu choro, respirei e limpei meu rosto rapidamente. Cambaleei até a porta. Ao abri-la dei de cara com um crachá branco, com a foto de um homem estranho e um sobrenome um tanto familiar para mim: Paulo Bloom Clair.

Dobra D'água 1: A NascenteOnde histórias criam vida. Descubra agora