Capítulo 2 - O contato com Nec, o Senhor das Ilusões.

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Se, por ventura, outra pessoa estivesse no lugar de Ísis, com certeza diria que aquilo tudo foi um sonho, fruto da mais criativa imaginação. Mas Ísis não. No fundo ela sabia que havia posto os pés em um lugar que rompia o espaço-tempo entre o real e o místico, ela sabia que aquele imenso lugar azul era a fenda mais profunda do coração de Iara, e que não havia lugar melhor que aquele para que Iara transferisse seus poderes para ela. Passando tão pouco tempo naquela dimensão alternativa, Ísis teve acesso a todas as memórias e sentimentos de Iara após tocar aquelas águas. É como se a mulher fosse, agora, um livro aberto. Conhecimentos místicos de eras antigas preenchiam a mente da garota, lendas que ouvia quando criança agora fazia todo o sentido. Deitada, naquela cama de hospital, ela vasculhava sua mente atrás de pontos que a poderia levar até Ignis, e o impedir de reduzir tudo á cinzas. Distraído, Gregório de La Blanca, pai de Ísis, entra no quarto com um copo de café e percebe que a filha havia acordado.

— Peixinho, você acordou! — Disse ele empolgado.

— Sim, papai.

— Ô, meu bem, quantas vezes pedi para você não andar sozinha na mata? Alguns pescadores encontraram você caída e disseram que se demorassem mais um pouco você poderia...

Poucos segundos de silêncio.

— Está tudo bem papai, eu estou bem.

— Um incêndio, Ísis, onde você estava com a cabeça? Você queria apaga-lo sozinha?

Eu ainda quero apaga-lo, papai. Pensou ela.

— Eu estava caminhando por lá e senti o cheiro de queimado, não sabia da proporção do fogo, e acho que acabei inalando fumaça demais, foi isso.

Gregório balançou a cabeça de forma negativa e abraçou Ísis. Estava feliz pelo Peixinho estar bem. Peixinho, um apelido fofo, não é? É uma sátira em comparação ao nome da mãe de Ísis, Ariel, o mesmo daquela sereia dos contos infantis de princesa. O apelido ganhou força quando Ísis começou as aulas de natação, conquistando alguns campeonatos juvenis pelo estado do Rio Grande do Sul, antes de se mudarem para Tocantins. E quando a garota revelou ao pai que estudará biologia marinha, o apelido fez ainda mais sentido.

— O importante é que já podemos ir para a casa. O médico lhe deu alta.

Sorrateiramente Ísis passou a mão naqueles brincos e no colar, logo os guardou num bolso lateral da mochila. Aqueles acessórios foram o último esforço de Iara, ali ela solidificou todo o seu desejo e poder cósmico, tudo graças a aquelas estrelas cadentes.

Dentro do carro, a caminho de casa, o rádio murmurava baixo o som de uma banda que havia perdido seu vocalista a pouco tempo. Suicídio, dizia os jornais. Gregório tagarelava sem parar reclamando sobre os problemas na hidrelétrica onde trabalhava quando um forte vento começou a soprar lá fora. No canteiro central, as árvores perdiam milhares de suas folhas, cobrindo todo o asfalto da rua. Elas voavam de forma aleatória, prejudicando a visão dos motoristas. Não demorou muito para que o primeiro acidente acontecesse. Uma van escolar chocou-se contra uma placa, parando todo o fluxo do trânsito. Foi aí que Ísis ouviu uma bizarra gargalhada, aguda e irritante.

— Ouviu isso papai?

— O quê? A batida? Ouvi.

Ísis suspirou, sabia que algo estranho açoitava ali. Discreta, ela pegou os brincos e o colar, passou o colar no pescoço e cada brinco tomou o seu lugar na orelha da menina. Ela focou os olhos nas árvores do canteiro central e quando seu globo ocular ficou inteiro azul, ela percebeu que algo saltava de uma árvore para a outra, agitando as folhas. Outra gargalhada alta. Na via contrária, um caminhão carregado com madeiras descia de forma desgovernada a rua, buzinando excessivas vezes. O caminhão invadiu o canteiro, passando a correr na contramão, vindo em rota de colisão com o carro onde estava Ísis e o pai.

— Meu Deus do céu! — Gritou Gregório, enquanto falhava ao soltar o cinto de segurança. — Vamos morrer!

Havia uma garrafa de água no painel do carro, e toda a água dentro dela se agitou quando o globo ocular de Ísis ficou azul. O carro esguichou água no para-brisas no mesmo tempo em que a garrafa estourou. O caminhão estava prestes a atropelar o carro quando a tampa de um bueiro voou pelos ares com o movimento da mão de Ísis. Um turbilhão de água saiu dali, e, bizarramente, transpassou o caminhão que, após isso, sumiu. Outra gargalhada. Aquela coisa que saltava entre as árvores seguiu pulando até um pequeno parque fechado. Ísis soltou-se do cinto de segurança e saiu do carro, antes mesmo que seu pai, ainda de olhos fechados esperando o impacto do caminho, pudesse vê-la. Ísis adentrou ao parque. Ali era uma pequena reserva fechada, com alguns animais silvestres e árvores nativas do estado.

Caminhando, atenta, ela percebeu que o fim da tarde havia chegado, e que o conjunto das árvores ali escurecia o local. Ísis ouviu mais uma vez aquela gargalhada, e um redemoinho surgiu a sua frente. Quando a ventania cessou, Ísis sentiu um intenso cheiro de fumo. Pele negra como a noite, aquilo se equilibrava em apenas uma perna. Era Nec Logro, senhor das ilusões. Nec não possuía olhos, apenas pequenas orelhas, nariz e boca. Sua boca era larga, ocupava metade de seu rosto. Os dentes eram serrilhados como facas de cozinha, e no canto de sua boca repousava um grande charuto amarelo. Vestia uma calça vermelha aos trapos, que mal cobria sua única perna. Um longo gorro vermelho que descia até o seu calcanhar cobria sua cabeça.

— Vejo, aliás, sinto que roubou os poderes de Aquariami. – Disse o negro, vulgo, Saci. — Ela era mesmo fraca, afinal, estava se evolvendo com uma humana, não é? Lixo. Mas, você irá se juntar a nós, mocinha? Logro quer saber.

— Me juntar a vocês, Nec? Estou aqui para salvar vocês.

Ísis fechou os olhos e envolveu o pingente do colar em sua mão direita. Um intenso brilho azul vazou por entre os dedos da menina quando um vórtice de água a envolveu. Nec saltou para trás. O vórtice aumentou, e em um piscar de olhos cessou, revelando Ísis, que agora renasceu na forma de Evablue. Sua enorme nadadeira verde era sustentada por uma pequena onda de água. O colar havia se transformado aquele tridente dourado, ele brilhava majestosamente na mão direita dela. Escamas cobriam seus seios, deixando apenas seu abdômen à mostra. Suas madeixas azuis estavam modeladas para trás em uma pequena curvatura. As orelhas de Ísis deram o lugar a três finas e longas cartilagens ligadas por uma fina membrana, elas lembravam as patas de um anfíbio. Evablue olhou para Nec Logro e girou o tridente, e, em resposta, Nec gargalhou.

Evablue - O chamado das águas. Volume 1Onde histórias criam vida. Descubra agora