Aquela aguda e irritante gargalhada ressoou por ali. Com um largo sorriso, Nec exibia fileiras de enormes dentes serrilhados e gastos. O negro tragou seu charuto e liberou a fumaça pelas narinas, em seguida ergueu os dois braços como um crucifixo profano. Uma fileira circular de facas apareceu em volta de Nec. Elas iam desde a altura de seu joelho, passavam por cima de sua cabeça e terminavam na mesma altura do outro lado. Ele passou a mão em uma delas, e, de forma grotesca, lambeu a lâmina da faca, arremessando-a em seguida na direção de Evablue. A defesa era óbvia, o que era uma faca contra um tridente de dois metros? Ela então levou o tridente na direção da faca, a fim de desvia-la da rota, porém, a lâmina passou direto, sumiu como aquele caminhão de agora a pouco. Os olhos de Evablue correram para frente, buscando por Nec, mas nada puderam ver. As escamas dela se arrepiaram, quando, no canto de seu olho direito, ela viu um vulto, e quando ergueu mais uma vez o seu tridente para a defesa, era tarde. Logro acertou um soco devastador no rosto de Evablue. Ela fora arremessada alguns metros à frente, chocando-se e quebrando algumas árvores.
Evablue se levantou em meio aos troncos das árvores, e uma fina linha de sangue azul escorria no canto de sua boca. Sangue azul, a prova da família Real do trono de Atlântida. Nec Logro gargalhava, provocando Evablue.
— Logro está sendo bonzinho com a moça, Logro poderia arrancar a sua cabeça, senhorita herdeira do trono das águas.
— Fui ingênua ao esquecer as suas trapaças, Nec. Você é um bastardo traiçoeiro que leva tudo na brincadeira. Garanto que da próxima vez arrancarei a única perna que lhe resta!
Evablue bateu o tridente no chão, e uma onda de pouco mais de três metros surgiu atrás dela.
— Tudo que ouço são palavras vagas, palavras sem vigor. — Disse Nec.
Ele mais uma vez ergueu os braços e aquelas lâminas voltaram. Equilibrando-se na ponta do pé, ele dava pequenos pulos, como aqueles lutadores de boxe fazem. Evablue apontou para Logro o seu tridente, e aquela onda avançou ferozmente. Nec retirou seu gorro, alargando-o com as duas mãos. Toda aquela água foi sugada pelo gorro vermelho. Evablue sorriu.
— Perdeu a sanidade, moça? Sorrindo diante do fracasso.
— Eu não fiquei apenas com os poderes de Iara, Nec, eu tenho comigo o coração dela e suas memórias e conhecimento.
— Coração? Lixo! — Retrucou Nec.
— Sim. No coração dela estão armazenados tudo o que ela viveu e tudo o que ela sabe, do mesmo modo que você guarda tudo dentro do seu gorro, Iara mantinha tudo em seu coração.
Aquele largo sorriso no rosto de Nec se foi. Os dentes estavam agora escondidos.
— Não sei se você sabe, mas... Eu posso manipular as águas em todas as dimensões. — Continuou Evablue. — Eu sou parte dela.
Um ar gélido pairou sobre o parque. Nec retirou o gorro de sua cabeça e o jogou no chão, foi quando uma camada de gelo se formou em volta dele, o selando por completo.
— Chega de trapaças para você. — Disse Evablue.
— Maldita! Sua maldita! Como ousa congelar tudo na dimensão do meu gorro? Aquela dimensão é minha! Mamãe disse que é minha!
— Mãe? Você se refere à aquela que você renegou sucumbindo-se assim? A Mãe Caipora hoje chora por você, Logro!
Estava estampado no rosto dele a sua indignação. Em um ataque desesperado, Nec Logro avançou, lançando todas as lâminas na direção de Evablue, ela, esperta, ergueu alguns pilares de água para conte-las. Feito isso, ela saltou, usando a mesma tática usada antes pelo trapaceiro. Do alto ela pôde ver Nec, e, usando o tridente, lançou um corte no ar. Dele saiu um jato d'água circular conforme o corte, porém, quando a primeira molécula de água tocou a pele negra de Nec, todo o resto da água se solidificou, congelando-o por completo.
Evablue aterrissou no chão, mas logo se apoiou no tridente, cuspindo um pouco de sangue azul no chão úmido. Aquele soco foi para valer. Nec Logro estava ali, como uma estátua, ainda olhando para o alto, boquiaberto ao ver o golpe de Evablue. Ela foi até o oponente congelado, e, olhando para ele, repousou a ponta central do tridente frente ao pescoço dele. Antes que a ponta da lâmina perfurasse o gelo, uma névoa rasteira forrou o chão. O cenário passou a ser mortiço, como um cemitério nas horas mais agonizantes. A vegetação baixa desfaleceu, alguns pássaros e outros animais caíram das árvores já sem vida. Nem mesmo os insetos foram poupados. Um som galopante avisava que algo estava por vir. Evablue se afastou de Nec e ficou atenta, correndo seus olhos como um radar por toda a parte. Uma chama esverdeada surgiu entre as árvores que já apodreciam. Os olhos de Evablue arregalaram-se quando o galope cessou.
— Ora, ora. Está se divertindo com os poderes de Aquariami? — Disse uma voz feminina.
— Pelo contrário, Mortis. Não me agrada nem um pouco matar os irmãos de Iara.
— Iara? Lave essa boca, criança. Não suporto ver humanos nos dando nomes como se fossemos objetos de sua criação. Após acabarmos com você, nós vamos mostrar aos humanos o preço que vão pagar por desequilibrar o mundo cósmico!
Mortis era uma criatura quadrúpede, como um equino, de cor acinzentada. Sua pele era fétida, estava em pura putrefação. Pedaços de sua carne caiam conforme ela andava, e em meio às feridas, um líquido negro como petróleo escorria pelas suas patas. Em algumas partes de seu corpo era possível ver seus ossos através da carne morta. Na ponta de seus cascos havia ossos pontiagudos como uma agulha. Uma chama verde mesclada com preto tomava o lugar de sua cabeça. Hidra Mortis, a emissária dos pecados e mensageira da morte, vulgo, Mula-sem-cabeça.
A chama verde e preta sobre o dorso de Mortis se expandiu. Ela parou ao lado de Nec Logro, e gradativamente o gelo começou a se degenerar. A chama não era quente, era fria como a morte, deteriorava tudo que alcançava.
— Mortis, não! — Gritou Evablue.
Aquela aguda e irritante gargalhada voltou. Metade do corpo de Nec estava descongelado.
— Pensou que ia se safar dessa, moça? Eu vou lhe socar o outro lado da cara para aprender a não congelar o gorro dos outros!
— Cale-se, Nec. — Disse Mortis. — Se limite em apenas matá-la, assim sugaremos o poder cósmico de Aquariami, e juntos, com Ignis, vamos ter a vingança que tanto queremos.
— Mas e a diversão, Mortis? Precisamos de um pouco de diversão. Olhe só para ela, não daria um lindo e grande saco de pancadas verde? Posso até treinar o meu chute especial nela!
— Chute? Pense bem no que está dizendo, Nec. — Retrucou Evablue, com sarcasmo.
O gelo se foi, e Nec Logro estava livre. Seu gorro vermelho ainda estava congelado, por se tratar de uma outra dimensão, Mortis não foi capaz de deteriorar o gelo de lá. O globo ocular de Evablue voltou a ficar azul, foi quando ela olhou para o céu e sorriu.
— Veja, Mortis, a menina já se contentou com a morte e já está até sorrindo para o céu! Vamos manda-la logo para lá, vamos?
As feridas de Evablue começaram a se fechar, aquele corte em sua boca já não sangrava mais. Algumas nuvens densas estavam se juntando sobre o parque, e um relâmpago iluminou o céu de Tocantins.
— Vocês têm certeza disso, Nec e Mortis? Podemos lutar juntos contra Ignis, e dar um fim nisso tudo.
— Você disse exatamente o que queremos, — Disse Mortis — dar um fim, mas, dar um fim em você!
Caipora, receba, com graça, dois de seus filhos. Me perdoe. Pensou Evablue.
— Nec Logro, Hidra Mortis, o meu nome é Evablue, e vocês vão conhecer a fúria da filha de Atlântida, aquela que reina diante do curso das águas!
Outro relâmpago iluminou o céu.
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Evablue - O chamado das águas. Volume 1
FantasyMudando-se de Porto Alegre para Tocantins, Isis enfrenta a nova rotina de viver sem amigos e também sem a companhia de sua mãe. Mas os ares mudam quando ela conhece alguém que mudará o seu destino para sempre. Alguém que você só tenha ouvido falar e...