No outro dia de manhã nem bem Macunaíma abriu a janela, enxergou um passarinho verde. O herói ficou satisfeitíssimo e inda estava ficando satisfeito quando Maanape entrou no quarto contando que as máquinas jornais anunciavam a volta de Venceslau Pietro Pietra. Então Macunaíma resolveu não ter mais contemplação com o gigante e matá-lo. Saiu da cidade e foi no mato Fulano experimentar força. Campeou légua e meia e afinal topou com uma peroba com a sapopemba do tamanho dum bonde. "Esta serve" ele fez. Enfiou o braço na sapopemba, deu arranco e o pau saiu da terra não deixando nem sinal. "Agora sim que tenho força!" Macunaíma exclamou. Tornou a ficar satisfeito e voltou pra cidade. Porém não podia nem andar porque estava cheio de carrapatos. Macunaíma com muita pachorra falou pra eles:
– Ara, carrapatos! vão embora, pessoal! Não devo nada pra vocês não!
Então a carrapatada caiu no chão por encanto e foi-se embora. Carrapato já foi gente que nem nós... Uma feita botou uma vendinha na beira da estrada e fazia muitos negócios porque não se incomodava de vender fiado. Tanto fiou tanto fiou, tanto brasileiro não pagou que afinal carrapato quebrou e foi posto pra fora da vendinha. Ele agarra tanto na gente porque está cobrando as contas.
Quando Macunaíma chegou da cidade já era noite fechada e ele foi logo tocaiar a casa do gigante. Tinha neblina sobre o mundo e a casa estava sem ninguém de tanta que era a escureza. Macunaíma se lembrou de procurar uma criada pra brincar mas tinha estacionamento das máquinas táxis na esquina e as cunhãs já estavam brincando por aí. Macunaíma se lembrou de armar arapuca pros curiós mas faltava isca. Não havia que fazer e sentiu sono. Porém dormir não queria não porque estava esperando Venceslau Pietro Pietra. Imaginou: "Agora vou vigiar e quando Sono vier enforco ele". Não demorou muito viu um vulto chegando. Era Emoron-Pódole, o Pai do Sono. Macunaíma ficou muito parado entre os ninhos de cupim pra não espantar o Pai do Sono e poder matá-lo. Emoron-Pódole veio vindo veio vindo e quando já estava pertinho, o herói cochilou, bateu com o queixo no peito, mordeu a língua e gritou:
– Que susto!
O Sono fugiu logo. Macunaíma seguiu andando muito desapontado. "Ora veja só! Não peguei mas quase... Vou esperar outra vez e macacos me lambam si agora não pego o Pai do Sono e enforco ele!" Assim que o herói refletiu. Tinha um corgo perto com um pau caído por cima servindo de pinguela. Mais pra longe uma lagoa branquejava de luar porque a neblina já tinha ido-se embora. A vista era quieta e muito suave por causa da agüinha cantando o acalanto dos pobres. O Pai do Sono devia de estar amoitado por ali. Macunaíma cruzou os braços e com o olho esquerdo dormindo ficou imóvel entre os ninhos de cupim. Não demorou muito enxergou Emoron-Pódole chegando. O Pai do Sono veio vindo veio vindo e de repente parou. Macunaíma ouviu que ele falava:
– Aquele sujeito não tá morto não. Morto que não arrota onde se viu!
Então o herói arrotou "juque!"
– Onde se viu morto arrotar, gentes! O Sono caçoou e fugiu logo.
Por isso que o Pai do Sono inda existe e os homens por castigo não podem dormir em pé.
Macunaíma ia ficar desapontado com o sucedido quando escutou uma bulha e enxergou do outro lado do corgo um chofer gesticulando feito chamado. Ficou muito sarapantado e gritou tiririca:
– Isso é comigo, colega! Sou francesa não!
– Sai azar! o rapaz fez.
Então Macunaíma pôs reparo numa criadinha com um vestido de linho amarelo pintado com extrato de tatajuba. Ela já ia atravessando o corgo pelo pau. Depois dela passar o herói gritou pra pinguela:
– Viu alguma coisa, pau?
– Vi a graça dela!
– Quá! quá! quá quaquá!...
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Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928)
RomanceObra do brasileiro Mário de Andrade.