Macunaíma estava muito contrariado. Não conseguia reaver a muiraquitã e isso dava ódio. O milhor era matar Piaimã... Então saiu da cidade e foi no mato Fulano experimentar força. Campeou légua e meia e afinal enxergou uma peroba sem fim. Enfiou o braço na sapopemba e deu um puxão pra ver si arrancava o pau mas só o vento sacudia a folhagem na altura porém. "Inda não tenho bastante força não", Macunaíma refletiu. Agarrou num dente do ratinho chamado crô, fez uma bruta incisão na perna, de preceito pra quem é frouxo e voltou sangrando pra pensão. Estava desconsolado de não ter força ainda e vinha numa distração tamanha que deu uma topada. Então de tanta dor o herói viu no alto as estrelas e entre elas enxergou Capei minguadinha cercada de névoa. "Quando mingua a Luna não comeces coisa alguma" suspirou. E continuou consolado.
No outro dia o tempo estava inteiramente frio e o herói resolveu se vingar de Venceslau Pietro Pietra dando uma sova nele pra esquentar. Porém por causa de não ter força tinha mas era muito medo do gigante. Pois então resolveu tomar um trem e ir no Rio de Janeiro se socorrer de Exu diabo em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia.
Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata, feiticeira como não tinha outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas Macunaíma chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão de pinga obrigatório. Já tinha muita gente lá, gente direita, gente pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos, todas essas gentes e a função ia principiando. Macunaíma tirou os sapatos e as meias como os outros e enfiou no pescoço a milonga feita de cera de vespa tatucaba e raiz seca de açacu. Entrou na sala cheia e afastando a mosquitada foi de quatro saudar a candomblezeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita. Ninguém mais não enxergava olhos nela, era só ossos duma compridez já sonolenta pendependendo pro chão de terra.
Vai, um rapaz filho de Oxum, falavam, filho de Nossa Senhora da Conceição cuja macumba era em dezembro, distribuiu uma vela acesa pra cada um dos marinheiros marcineiros jornalistas ricaços gamelas fêmeas empregados-públicos, muitos empregados-públicos! todas essas gentes e apagou o bico de gás alumiando a saleta.
Então a macumba principiou de deveras se fazendo um sairê pra saudar os santos. E era assim: Na ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadista de profissão, se chamando Olelê Rui Barbosa. Tabaque mexemexia acertado num ritmo que manejou toda a procissão. E as velas jogaram nas paredes de papel com florzinhas, sombras tremendo vagarentas feito assombração. Atrás do ogã vinha tia Ciata quase sem mexer, só beiços puxando a reza monótona. E então seguiam advogados taifeiros curandeiros poetas o herói gatunos portugas senadores, todas essas gentes dançando e cantando a resposta da reza. E era assim:
– Va-mo sa-ra-vá!...
Tia Ciata cantava o nome do santo que tinham de saudar:
– Ôh Olorung!
E a gente secundando:
– Va-mo sa-ra-vá!...
Tia Ciata continuava;
– Ôh Boto Tucuchi!
E a gente secundando:
– Va-mo sa-ra-vá!...
Docinho numa reza mui monótona.
– Ôh Iemanjá! Anamburucu! e Oxum! três Mães-d'água!
– Va-mo sa-ra-vá!...
Assim. E quando a tia Ciata parava gritando com gesto imenso:
– Sai Exu!
porque Exu era o diabo-coxo, um capiroto malévolo, mas bom porém pra fazer malvadezas, era um tormento na sala uivando:
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Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928)
RomanceObra do brasileiro Mário de Andrade.