16 - URARICOERA

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No outro dia Macunaíma amanheceu com muita tosse e uma febrinha sem parada. Maanape desconfiou e foi fazer um cozimento de broto de abacate, imaginando que o herói estava hético. Em vez era impaludismo, e a tosse viera só por causa da laringite que toda a gente carrega de São Paulo. Agora Macunaíma passava as horas deitado de borco na proa da igarité e nunca mais que havia de sarar. Quando a princesa não podia mais e vinha pra brincarem, o herói até uma vez recusou suspirando:

– Ara... que preguiça...

No outro dia atingiram as cabeceiras dum rio e escutaram perto o ruidejar do Uraricoera. Era ali. Um passarinho serigaita trepado na munguba, enxergando o farrancho gritou logo:

– Sinhá dona do porto, dá caminho pra mim passar!

Macunaíma agradeceu feliz. De pé ele assuntava a paisagem passando. Veio vindo o forte São Joaquim erguido pelo mano do grande Marquês. Macunaíma deu um té-logo pro cabo e pro soldado que só possuíam um naco esfarrapado de culote e o boné na cabeça e viviam guardando as saúvas dos canhões. Afinal ficou tudo conhecidíssimo. Se enxergou o cerro manso que fora mãe um dia, no lugar chamado Pai da Tocandeira, se enxergou o pauê trapacento malhado de vitórias-régias escondendo os puraquês e os pitiús e pra diante do bebedouro da anta se viu o roçado velho agora uma tigüera e a maloca velha agora uma tapera. Macunaíma chorou.

Abicaram e entraram na tapera. Vinha a boca-da-noite. Maanape com Jiguê resolveram fazer uma facheada pra pegarem algum peixe e a princesa foi ver si topava com algum arezi pra comerem. O herói ficou descansando. Estava assim quando sentiu no ombro um peso de mão. Virou a cara e olhou. Junto dele estava um velho de barba. O velho falou:

– Quem és tu, nobre estrangeiro?

– Não sou estranho não, conhecido. Sou Macunaíma o herói e vim parar de novo na terra dos meus. Você quem é?

O velho afastou os mosquitos com amargura e secundou:

– Sou João Ramalho.

Então João Ramalho enfiou dois dedos na boca e assoviou. Apareceram a mulher dele e as quinze famílias de escadinha. E lá partiram de mudança buscando pagos novos sem ninguém.

No outro dia bem cedinho foram todos trabucar. A princesa foi no roçado Maanape foi no mato e Jiguê foi no rio. Macunaíma se desculpou, subiu na montaria e deu uma chegadinha até a boca do rio Negro pra buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá. Jacaré achou? nem ele. Então o herói pegou na consciência dum hispano-americano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma.

Passava uma piracema de jaraquis. Macunaíma agarrou pescando e distraído distraído quando viu estava em Óbidos, a montaria cheinha de peixes frescos. Mas o herói foi obrigado a atirar tudo fora porque em Óbidos "quem come jaraqui fica aqui" falam e ele tinha que voltar pro Uraricoera. Voltou e como era ainda o pino do dia deitou na sombra da ingazeira catou os carrapatos e dormiu. Tarde chegando todos voltaram pra tapera só Macunaíma não. Os outros saíram pra esperar. Jiguê se acocorou botando a orelha no chão pra ver si escutava o passinho do herói, nada. Maanape trepou no grelo duma inajá pra ver si enxergava o brilho dos brincos do herói, nada. Então saíram por mato e capoeira gritando:

– Macunaíma, nosso mano!...

Nada. Jiguê chegou debaixo da ingazeira e gritou:

– Nosso mano!

– Que foi!

– Você, aposto que já estava dormindo!

– Dormindo nada, então! Estava mas era negaceando um inambuguaçu. Você fez bulha, nhambu escapuliu!

Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928)Onde histórias criam vida. Descubra agora