No outro dia bem cedo o herói padecendo saudades de Ci, a companheira pra sempre inesquecível, furou o beiço inferior e fez da muiraquitã um tembetá. Sentiu que ia chorar. Chamou depressa os manos, se despediu das icamiabas e partiu.
Gauderiaram gauderiaram por todos aqueles matos sobre os quais Macunaíma imperava agora. Por toda a parte ele recebia homenagens e era sempre acompanhado pelo séquito de araras vermelhas e jandaias. Nas noites de amargura ele trepava num açaizeiro de frutas roxas como a alma dele e contemplava no céu a figura faceira de Ci. "Marvada!" que ele gemia... Então ficava muito sofrendo, muito! e invocava os deuses bons cantando cânticos de longa duração...
"Rudá, Rudá!...
Tu que secas as chuvas,
Faz com que os ventos do oceano
Desembestem por minha terra
Pra que as nuvens vão-se embora
E a minha marvada brilhe
Limpinha e firme no céu!...
Faz com que amansem
Todas as águas dos rios
Pra que eu me banhando neles
Possa brincar com a marvada
Refletida no espelho das águas!..."
Assim. Então descia e chorava encostado no ombro de Maanape. Jiguê soluçando de pena animava o fogo da caieira pra que o herói não sentisse frio. Maanape engolia as lágrimas, invocando o Acutipuru o Murucututu o Ducucu, todos esses donos do sono em acalantos assim:
"Acutipuru,
Empresta vosso sono
Pra Macunaíma
Que é muito manhoso!..."
Catava os carrapatos do herói e o acalmava balanceando o corpo. O herói acalmava acalmava e adormecia bem.
No outro dia os três estradeiros recomeçavam a caminhada através dos matos misteriosos. E Macunaíma era sempre seguido pelo séquito de araras vermelhas e jandaias.
Caminhando caminhando, uma feita em que a arraiada principiava enxotando a escureza da noite, escutaram longe um lamento de moça. Foram ver. Andaram légua e meia e encontraram uma cascata chorando sem parada. Macunaíma perguntou pra cascata:
– Que é isso!
– Chouriço!
– Conta o que é.
E a cascata contou o que tinha sucedido pra ela.
– Não vê que chamo Naipi e sou filha do tuxaua Mexô-Mexoitiqui nome que na minha fala quer dizer Engatinha-Engatinha. Eu era uma boniteza de cunhatã e todos os tuxauas vizinhos desejavam dormir na minha rede e provar meu corpo mais molengo que embiroçu. Porém quando algum vinha eu dava dentadas e contapés por amor de experimentar a força dele. E todos não agüentavam e partiam sorumbáticos.
Minha tribo era escrava da boiúna Capei que morava num covão em companhia das saúvas. Sempre no tempo em que os ipês de beira-rio se amarelavam de flores a boiúna vinha na taba escolher a cunhã virgem que ia dormir com ela na socava cheia de esqueletos.
Quando meu corpo chorou sangue pedindo força de homem pra servir, a suinara cantou manhãzinha nas jarinas de meu tejupá, veio Capei e me escolheu. Os ipês de beira-rio relampeavam de amarelo e todas as flores caíram nos ombros soluçando do moço Titçatê guerreiro de meu pai. A tristura talqualmente correição de sacassaia viera na taba e devorara até o silêncio.
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Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928)
RomanceObra do brasileiro Mário de Andrade.