Capítulo 2 - Sobre amar

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– Há gerações, um monstro chamado Hai-Uri aterroriza o meu povo – contou Etana. – Essa criatura possui só um lado do corpo, tendo apenas uma perna, um braço, um olho.

– Qual o objetivo desse monstro?

– Ele devora humanos, com o intuito de, algum dia, sentir-se completo. Diz a lenda que ele só conseguirá seu objetivo quando devorar o humano completo.

Obá ainda não compreendia.

– O que seria esse humano completo?

– Um humano tão cheio de si, tão autossuficiente, que ele bastaria a si mesmo.

Obá já começava a entender a angústia da humana.

– Então você irá se entregar porque...

– Isso! – disse, interrompendo o pensamento de Obá. – Porque eu sou essa humana completa.

– Como sabe disso?

– No fundo, eu sempre soube. Sempre me senti completa. Tudo se confirmou quando fomos a um reino vizinho a procura de um sábio. Ele afirmou que eu sou essa humana. Que apenas eu poderia salvar o meu povo.

– Então é por isso que ia se sacrificar? Para salvar a seu povo?

– Sim! Mas, felizmente, não será necessário se eu tiver a sua ajuda, grande Obá – disse, ajoelhando-se novamente perante a divindade.

– Não se preocupe, humana. Eu ajudarei seu povo! – sorriu.

As duas seguiram a pé em direção ao vilarejo de Etana. Obá já havia derrotado vários outros monstros e até mesmo alguns orixás extremamente poderosos. Dessa vez, porém, ela não parecia tão confiante. Assim como o próprio monstro, Obá sentia-se incompleta desde que Xangô lhe banira do reino e, consequentemente, mais fraca.

Enquanto andavam, porém, uma grande dúvida tomou conta de Obá: e se essa fosse mais uma armadilha? Ela, que já havia sido enganada por Oxum, não cometeria o mesmo erro duas vezes, ainda mais com uma humana.

Com isso em mente e percebendo a distração de Etana, Obá lhe passou a perna e, com a sua faca de guerra em mãos, imobilizou-a.

– Agora quero que me conte a verdade, humana! – ordenou.

– Como assim? Eu lhe contei toda a verdade! – respondeu, surpresa com o golpe inesperado que recebera. – Mate-me, se quiser. Já disse que eu não tenho nada a perder. Morrer aqui ou pelas mãos de Hai-Uri não faz diferença.

– Sua história não faz sentido, Etana! Se é uma humana completa, se você se basta, então por que daria sua vida para salvar aos outros? Fuja! Viva apenas consigo e seja feliz!

Etana sorriu. Acreditava, até então, que os deuses fossem dotados da mais profunda sabedoria, mas descobrira naquele momento que o amor era um sentimento complexo até mesmo para os orixás.

– Não entende, Obá? É justamente por isso que sou a humana completa! É por amar a mim em primeiro lugar que consigo amar a todos os outros. E por amar aos outros, consigo enxergar que cada ser vivo é importante. Por isso, daria a minha vida por cada pessoa de meu povo, e por cada animal e cada planta que habitam esse planeta!

Obá soltou Etana e, pela primeira vez, uma humana viu uma orixá chorar.

– Por que chora, Obá?

– Nunca pensei que sentiria inveja de uma humana!

– Inveja? Mas por que? – surpreendeu-se a humana. – Você é uma das mais poderosas e cultuadas deusas de nossas terras! Você deve ser invejada, e não sentir inveja de uma pobre mortal!

– Pois eu invejo. Invejo sua completude, Etana. Desde que Xangô me baniu, eu não quero mais viver. Sinto-me incompleta. Estou cada vez mais perdendo minha energia. Eu amo Xangô a ponto de preferir morrer a viver sem ele.

Com a mão direita, a humana limpou as lágrimas da deusa.

– Nunca esteve em meus planos contrariar uma orixá, mas você não ama Xangô.

– Como? – questionou Obá, confusa. – Como pode dizer isso?

– É como lhe disse antes. Não há como amar ao outro sem amar a si em primeiro lugar. Se não consegue viver sem ele, então não ama Xangô, apenas dependende dele emocionalmente.

Obá se calou, envergonhada por compreender que ela, a mais poderosa das orixás, não sabia amar. O silêncio, porém, foi interrompido por um abraço de Etana.

– Vamos! Tenho uma batalha pela frente! E ficaria muito feliz se viesse comigo! – pediu a humana.

– Eu irei! – disse Obá, sorrindo. – Não lhe deixarei sozinha

Os Deuses Não Sabem AmarOnde histórias criam vida. Descubra agora