I - Com o desenvolvimento da psicanálise, a expressão mal d’esprit poderia
equivaler, em português dos nossos dias, a “doença (ou problema) emocional”.
Optamos por “doença do espírito” pela amplitude que lhe confere o autor e por
adequação ao contexto histórico e cultural da obra. Traduzir, a nosso ver, não deve
autorizar a atualização de conceitos. (N. do T.)
II - Não deixemos passar a oportunidade de assinalar o caráter desse ensaio. O
suicídio pode, de fato, estar ligado a considerações muito mais honrosas. Por
exemplo: os suicídios políticos ditos de protesto na revolução chinesa. [A edição
original de O Mito de Sísifo é de 1942: o autor, portanto, certamente ainda não
tivera conhecimento do fenômeno Kamikase, que lhe despertaria a atenção para
outros, análogos, na civilização japonesa. Sua nota, porém, antecipa a
consideração do auto-sacrifício dos bonzos na antiga Saigon, hoje Ho Chi Minh,
durante a guerra do Vietnã (N. do T.)]
III - Ouvi falar de um rival de Peregrinos, escritor do pós-guerra que, depois de
terminar o primeiro livro, suicidou-se com o intuito de atrair atenção para a sua
obra. A atenção realmente foi atraída, mas o livro foi considerado ruim.
IV - Mas não no sentido estrito. Não se trata de uma definição, trata-se de uma
enumeração dos sentimentos que podem comportar o absurdo. Acabada a
enumeração, não se terá, porém, esgotado o absurdo.
V - Camus, evidentemente, se refere a Sartre, que publicara há poucos anos, em
1938, La nausée (A náusea), um de seus primeiros livros - e dos mais
característicos de sua contribuição (N. do T.)
VI - Evidentemente em inglês no original. Pode-se traduzir por "O tempo está fora do
lugar", Shakespeare, Hamlet, Ato I, Cena V, 188. (N. do T.)
VII - A respeito da noção de exceção especialmente, e contra Aristóteles.
VIII - Pode-se pensar que negligencio, aqui, o problema essencial que é o da fé. Mas
não estou analisando a filosofia de Kierkegaard ou de Chestov ou, mais adiante, de
Husserl (seria preciso um outro lugar e uma outra atitude de espírito): eu Lhes
tomo emprestado um tema e examino se suas conseqüências podem convir às
regras já fixadas. É só uma questão de tenacidade.
IX - "Eu não disse "exclui Deus", o que ainda seria afirmar.
X - Esclareçamos uma vez mais: não é a afirmação de Deus que está sendo
considerada agora, mas a lógica que leva a ela.
XI - Até as epistemologias mais rigorosas admitem metafísicas. De tal maneira que a
metafísica de uma grande parte dos pensadores atuais consiste em ter apenas
uma epistemologia.
XII - Nessa época, era preciso que a razão se adaptasse ou morresse Ela se adapta.
Com Plotino, ela de lógica passa a estética. A metáfora substitui o silogismo. Aliás,
não é a única contribuição de Plotino à fenomenologia. Toda essa atitude já está
contida na idéia, tão cara ao pensador alexandrino, de que não há somente uma
idéia do homem, mas também uma idéia de Sócrates.
XIII - Trata-se realmente de uma comparação, não de uma apologia da humildade. O
homem absurdo é o contrário do homem reconciliado.
XIV - De vez em quando, a quantidade faz a qualidade. Se acredito, a esse respeito,
nos últimos assentamentos da teoria científica, toda a matéria é constituída de
centros de energia. Sua quantidade maior ou menor faz ser mais ou menos singular a sua especificidade. Um bilhão de íons e um íon diferem não apenas em
quantidade mas também em qualidade. A analogia com a experiência humana é
fácil de reconhecer.
XV - A mesma reflexão sobre uma noção tão diferente quanto a idéia do nada. Ela
não acrescenta nem subtrai nada ao real. Na experiência psicológica do nada, é na
consideração do que acontecerá dentro de dois mil anos que nosso próprio nada
adquire verdadeiramente seu sentido. Sob um de seus aspectos, o nada é feito
exatamente da soma das vidas que ainda vêm e não serão as nossas.
XVI - A vontade, aqui, é apenas o agente. Ela tende a manter a consciência e
fornece uma disciplina de vida. Isso é apreciável.
XVII - O que importa é a coerência. Aqui se parte de um consentimento para com o
mundo. Mas o pensamento oriental ensina que podemos nos entregar ao mesmo
esforço de lógica escolhendo contra o mundo. Isso também é legítimo e dá a este
ensaio sua perspectiva e seus limites. Mas, quando a negação do mundo se
exerce com o mesmo rigor, chega-se com freqüência (em certas escolas vedantas)
a resultados semelhantes no que diz respeito, por exemplo, à indiferença das
obras. Em um livro de grande importância, A escolha, Jean Grenier funda, de certo
modo, uma verdadeira "filosofia da indiferença".
XVIII - Madame Roland (1754-93) era a mulher do político francês - girondino - Jean-
Marie Roland de la Platière (1734-93) e influía decisivamente na carreira do marido
através do salão que mantinha na rue Guénégaud, onde recebia os girondinos.
Com a perseguição a estes, ela foi executada. O marido, que chegara a ministro do
Interior e se refugiara na Normandia, ao receber a notícia se suicidou. (N. do T.).
XIX - Tirso de Molina (1584-1648) dramaturgo e religioso espanhol, o primeiro a fixar
em peça teatral as aventuras do lendário Don Juan. El burlador de Sevilla y
convidado de piedra, até hoje uma das melhores versões do tema, foi escrita por
volta de 1630. (N. do T.)
XX - Oscar Vladislas de Lubicz-Milosz (1877-1935), escritor bielo-russo de expressão
francesa e tendências místicas. É autor, entre muitas outras obras, da peça Miguel
Mañara, a que Camus se refere. (N. do T.)
XXI - No sentido pleno e com os seus defeitos. Uma atitude sã também compreende
defeitos.
XXII - Penso aqui no Alceste de Molière. Tudo é tão simples, tão evidente e
grosseiro. Alceste contra Filinto, Celimena contra Elianta, a causa toda na absurda
conseqüência de um caráter impelido para o seu fim, e o próprio verso o "mau
verso", mal escondido como a monotonia do caráter.
XXIII - É curioso ver que a mais intelectual das pinturas, a que procura reduzir a
realidade a seus elementos essenciais, não passa, em última análise, de uma
alegria para os olhos. Ela só reteve do mundo a cor.
XXIV - Que se reflita nesse ponto: isso explica os piores romances. Quase todo o
mundo se crê capaz de pensar e de certo modo, mal ou bem, realmente pensa.
Muito poucos, ao contrário, podem se imaginar poeta ou inventor de frases. Mas, a
partir do momento em que o pensamento prevaleceu sobre o estilo, a multidão
invadiu o romance. Isso não é um mal tão grande quanto se diz. Os melhores são
levados a maior exigência para consigo mesmos. Quanto aos que sucumbem, não
mereciam sobreviver.
XXV - A de Malraux, por exemplo. Mas teria sido preciso tratar ao mesmo tempo do
problema social, que de fato não pode ser evitado pelo pensamento absurdo (se bem que este lhe possa propor diversas soluções, e bastante diferentes). No
entanto, os limites são necessários.
XXVI - "Stavróguin: - Você acredita na vida eterna no outro mundo? Kirílov: - Não, na
vida eterna neste aqui".
XXVII - "O homem só resolveu inventar Deus para não se matar. Eis aí o resumo da
história universal até o momento".
XXVIII - Bóris de Schloezer.
XXIX - Observação curiosa e penetrante de Gide: todos os heróis de Dostoiévski são
polígamos.
XXX - O Moby Dick, de Melville, por exemplo.
XXXI - O título camusiano encerra, no original francês, um trocadilho excelente e,
como quase todos, intraduzível: Le mythe de Sisyphe soa precisamente como le
mythe décisif (o mito decisivo). (N. do T.)
XXXII - Na primeira edição de O mito de Sísifo, este estudo sobre Franz Kafka foi
substituído por um capítulo que abordava Dostoiévski e o suicídio. Foi publicado,
porém, pela revista L'Arbalète, em 1943. Reencontraremos aí, sob um outra
perspectiva, crítica da criação absurda que as páginas sobre Dostoiévski já haviam
esboçado. (N. do E.)
XXXIII - Deve-se notar que com a mesma legitimidade se podem interpretar as obras
de Kafka no sentido de uma crítica social (por exemplo, em O processo). É
provável, aliás, que não haja como escolher. As duas interpretações são boas. Em
termos absurdos, como vimos, a revolta contra os homens se dirige também a
Deus: as grandes revoluções são sempre metafísicas.
XXXIV - Em O castelo, parece muito que os "divertimentos", no sentido pascaliano,
são representados pelos Ajudantes, que "desviam" K... de sua inquietação. Se
Frieda acaba sendo a amante de um desses ajudantes, é que ela prefere os
cenários à verdade, a vida cotidiana à angústia partilhada.
XXXV - Isso evidentemente só vale para a versão inacabada de O castelo que Kafka
nos deixou. Mas é duvidoso que, nos últimos capítulos, o escritor tenha rompido a
unidade de tom do romance.
XXXVI - A pureza do coração.
XXXVII - A menção de Camus, de ironia justificadamente meio cáustica, invectiva o
tradicionalismo e a mediocridade satisfeita de Bordeaux (1870-1963). (N. do T.)
XXXVIII - Não esqueçamos, a propósito, que Malraux merece tanto essa distinção de
Camus que publicara, em 1937, cinco anos antes de O mito de Sísifo, um romance
com o próprio título de L'espoir (A esperança): é um livro de inconformismo e de
luta, em plena Guerra Civil Espanhola. (N. do T.)
XXXIX - A única personagem sem esperança de O castelo é Amália. É a ela que o
agrimensor se opõe com mais violência.
XL - Sobre os dois aspectos do pensamento de Kafka, comparar Nas galés ("A
culpabilidade - entenda-se do homem - nunca deixa dúvidas.") e um fragmento de
O castelo - relato de Momus ("A culpabilidade do agrimensor K... é difícil de
provar.")
XLI - O que é proposto acima é, evidentemente, uma interpretação da obra de Kafka.
Mas é justo acrescentar que nada impede de considerá-la, à parte de qualquer
interpretação, do ponto de vista puramente estético. Por exemplo, B. Groethuysen,
em seu notável prefácio ao Procès, se limita, com mais prudência do que nós, a
acompanhar as fantasias dolorosas desse que ele chama, de maneira surpreendente, um dormidor acordado. É o destino - e talvez a grandeza - dessa
obra oferecer tudo e não confirmar nada.