Frei António percebeu que,
desta vez, o caso era mais sério já
que o próprio Duque o esperava
impacientemente no amplo terraço
de entrada.
Quando o viu, torceu
ligeiramente o bigode "raffiné",
procurando as palavras para
dizer—lhe. Não as encontrando de
pronto, respondeu com ligeiro sinal
de cabeça aos cumprimentos do
reverendo, que, em virtude do
esforço realizado em hora tão
pouco agradável, foram menos
cordiais do que os habituais. Em
seguida, tomou o braço de Frei
Antônio, conduzindo—o
silenciosamente ao seu gabinete
particular.
Uma vez lá, cerrou a porta dando
volta à chave. Designou com a mão
uma cadeira onde Frei Antônio tomou assento. Por sua vez, deu
volta à escrivaninha de madeira
negra, toda encrostada de
magnífico trabalho em marfim,
sentando—se em sua bela cadeira.
O gabinete de trabalho do Duque
demonstrava pelo luxo e pelo bom
gosto de suas peças, verdadeiras
obras de arte, a finura do seu
dono.
Roberto Chãtillon era ainda
incontestavelmente um belo
homem. Apesar dos seus quase 50
anos, estava admiravelmente
conservado. Seu rosto nobre,
altivo, aureolado agora de alguns
cabelos brancos, ganhara
expressividade. Seus olhos,
sempre tão emotivos, eram agora,
mais do que nunca, espelho do que
lhe ia ao íntimo, embora os anos o
houvessem ensinado há disciplinar
um pouco seus impulsos.
Mais refeito e já à vontade no
ambiente sóbrio do gabinete, Frei
Antônio perscrutou a fisionomia do
Duque e não lhe foi difícil
reconhecer nela estampadas a
preocupação e o desgosto.
Habituado a ouvir, nada perguntou,
aguardando pacientemente as
palavras do fidalgo que vieram em
seguida.
— Desculpai Vossa
Reverendíssima, se vos mandei
chamar em hora tão inoportuna, O assunto, entretanto, é de extrema
gravidade e não poderei deixar de
esclarecer que necessito da vossa
ajuda, que, alias, saberei
recompensar devidamente.
Ouvindo—o mencionar a
recompensa. Frei António sacudiu
energicamente a cabeça.
— Recompensa, só a desejo de
Deus, mas, estou à vossa
disposição. Em que posso ser útil?
— Bem... Frei António, a história é
complicada. Nem sei de fato como
principiar... — o Duque calou—se
algo embaraçado. Depois de alguns
segundos, tomado de firme
decisão, continuou. — A vida
muitas vezes nos prepara
verdadeiras ciladas. Infelizmente,
na mocidade, nós cometemos
sempre muitas leviandades.
Frei António ouviu
aparentemente circunspecto e
atencioso, mas não pode deixar de
pensar que o Duque continuava a
cometer leviandades, embora já
não fosse jovem.
— Estas loucuras, nós as pagamos
bem caro. O que me aconteceu
hoje é prova cabal do que estou
afirmando. Mas, para esclarecer—
vos sobre o motivo do meu
chamado, preciso confessar—me.
Pela fisionomia de Frei António
passou um lampejo de idealismo.
— Podeis falar meu filho. Estou pronto a ouvir. Duque colocou a
sua cadeira frente a do sacerdote e
de cabeça baixa aguardou que ele
terminasse suas orações.
— Quais os vossos pecados, meu
filho?
— Trata—se de uma história que
desejo vos contar. Aliás, já a
conheceis em parte. Deveis
recordar—vos sem dúvida de
Anete, a jovem irmã de Liete
Merediet.
O padre assentiu com a cabeça.
— Sabeis também que ela foi uma
das maiores paixões de minha
vida. Eu diria mesmo, o meu
grande amor. Sabeis que a levei
para Versailles, mas nada ainda
vos contei do que sucedeu depois.
Em Versailles comprei—lhe uma
bela vivenda, um pouco afastada
do centro da cidade e
constantemente a visitava,
passando lá a maior parte dos
meus dias.
Roberto fez ligeira pausa.
Percebia—se que lhe era penoso e
difícil falar do assunto, mas
corajosamente continuou:
— V. Revma., talvez ignore que
Anete concordou em sair de Ateill
porque ia ser mãe. Mãe de um filho
meu.
O padre continuou impassível.
— A criança nasceu alguns meses
depois. Uma sadia e linda menina.
Anete ficou radiante, mas insistia
para que eu legitimasse a criança,
desposando—a. Infelizmente,
deixei—me enredar pela família e
foi nessa ocasião que me resolvi
por Alice Montpassant.
Funda ruga cavou—se na fronte
de Roberto, agora quase esquecido
do momento presente, absorto
pelas recordações.
—Talvez, se eu houvesse tido
coragem e desposado Anete
naquela ocasião, teria sido mais
feliz no matrimônio. Ela era
adorável. Sua beleza, seu
temperamento alegre e amoroso,
teria seguramente realizado minha
felicidade. Mas, nós somos
covardes, reverendo, temos medo
das aparências e das opiniões da
sociedade.
Tristemente o reverendo
concordou com um gesto.
— Deus sabe como tenho sido
castigado por essa covardia!
Ele, que fora o algoz de duas
mulheres, intitulava—se vitima!
Desejava captar a todo custo à
simpatia do padre e via nessa
posição ótima oportunidade.
— Por causa do noivado com Alice,
tive que espaçar minhas visitas a
Anete. Quando ela descobriu tudo,
tentou o suicídio. Felizmente foi impedida pela criada. Recusou—se
a ver—me daí por diante. A
princípio, orgulhosamente, conclui
que ela deveria precisar de mim
para manter a filha, mas, depois
compreendi o quanto estava
enganado. Receoso que ela
tentasse um escândalo resolvi
procurá—la somente depois do
casamento. Escrevi—lhe uma carta
dizendo—lhe que a amava e que
somente casava por conveniência.
Que o casamento em nada haveria
de influenciar nossa vida, pois que
tudo entre nós continuaria na
mesma. Que ela esperasse
pacientemente, eu saberia
recompensá—la regiamente. Certo
de que estava senhor da situação,
após a remessa da missiva,
deixei—me levar no torvelinho dos
preparativos para a boda. Casei—
me com Alice e logo de início não
conseguimos nos compreender.
Minha mulher não tolerava que eu
a beijasse sequer... Tudo para ela
era pecaminoso e desonesto,
Perdoe—me, V. Reverendíssima, se
abordo o assunto, mas minha
mulher era fria como a neve.
Um mês após o casamento, já não podia suportar as saudades de
Anete e de nossa pequena filha. Fui
procura—las.
O Duque fez ligeira pausa, olhos
fixos no teto, sem, entretanto
nada ver senão suas
reminiscências.
— Foi em vão que bati na porta da
casa onde Anete morava e onde
tão felizes havíamos sido. Ninguém
me respondeu. Passados os
primeiros instantes de estupor,
notei o aspecto de abandono em
que se encontrava o local. A poeira
acumulava—se nos vidros, na
varanda, e o mato começava a
grassar no jardim. Aturdido,
permaneci interdito durante muito
tempo.
Pensamentos diversos povoavam—
me a mente. Com certeza Anete
teria ido veranear em alguma
parte. Talvez houvesse procurado
fugir à dor que as notícias da
cerimônia lhe acarretariam. Mas,
se assim fora, certamente já
deveria ter regressado! Ainda
naquele instante, eu procurava
fugir à realidade, não pensando
sequer na possibilidade de uma
separação definitiva entre nós, e principalmente da inocente
criatura rosada que estendia os
bracinhos redondos quando me via.
A noite começara a cobrir a face da
terra, e eu ainda permanecia
esperando sem saber o quê. Minha
atenção foi, porém despertada pelo
vulto de uma senhora idosa que,
parada no portão de entrada, no
jardim, meio embaraçada e incerta,
demonstrava visivelmente desejar
dizer—me alguma coisa.
Imediatamente, encaminhei—me
para ela, cumprimentando—a com
polidez.
— Senhor, sou moradora da casa
vizinha e observei que V. Sa. há
muito se encontra aqui. A casa está
vazia. Senti como que um
pressentimento da tristeza.
—Não sabia que se haviam
mudado!
— Bem me parecia. Se quiserdes
acompanhar—me a casa, contar—
vos—ei tudo. O assunto é sério e
não poderei expô—lo aqui na rua.
Murmurando alguns
agradecimentos, prontifiquei—me a
acompanhá—la. Sra., Mercedes era
o seu nome. De origem galega, seu
francês era carregado de ligeiro sotaque que emprestava
extraordinária simpatia a sua voz
cantante e agradável. Deveria ter
pouco mais de 40 anos, os cabelos
grisalhos levantados em bandós,
na nuca, realçavam ainda mais a
negrura dos seus olhos redondos.
Aliás, toda ela era redonda, pois
que bem cheia de corpo. Segui—a
entre temeroso e esperançoso.
Sempre me mantivera afastado do
convívio dos vizinhos quando ia ver
Anete. Detestava popularidade em
tomo do caso, mas Anete
certamente não poderia ter vivido
reclusa, tanto mais que pouco
podia contar comigo para atender
às necessidades de nossa filha com
relação à sua maneira de criar—se,
educar—se, etc. Sabia que ela se
havia tomado amicíssima de
Madame Mercedes que enviuvara
há alguns anos e possuía três
filhos. Madame Mercedes,
gentilmente, conduziu—me à sua
sala de estar e lá, depois de me
servir um cálice de vinho, tomou
assento à minha frente.
— Senhor, rogo—vos desculpas
pela intromissão, mas, não foi
curiosidade nem...
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O Morro das Ilusões
EspiritualLivro de 1969 A alma cigana e o mistério de sua amiga! Quem de nós não se fascina? No fundo do coração, aquele especial sentimento: Será que já não estivemos entre eles? Por isso, os personagens deste livro, são como velhos conhecidos nossos, acorda...