Ao deixar sua mãe na biblioteca, Roberto caminhou desorientado para seus aposentos,
trancando—se por dentro.
Deixou—se cair em uma poltrona
nervoso e desalentado. Jamais
desejara tanto uma coisa como
casar—se com a bela Etiene.
Deveria renunciar à felicidade
simplesmente porque seu pai fora
leviano?
Mil pensamentos turbilhonavam
em seu cérebro excitado, ora
receoso, ora destemidos. Poderia
reagir sair de casa e casar—se
contra a vontade de sua mãe, mas
seu aspecto triste, cansado, infeliz,
acudia—lhe à mente e sentia—se
sem coragem para causar—lhe
mais este sofrimento. O que fazer?
A quem recorrer? Ele não conhecia
ninguém que o pudesse aconselhar
naquela contingência.
Talvez que... Frei Antônio, o
bondoso pároco, pudesse dar—lhe,
senão a felicidade, pelo menos um
pouco de paz.
O jovem Roberto, emotivo ao
extremo, não sabiá reagir e
enfrentar a situação. Era um fraco,
um tímido, o que lhe tomava o
mundo interior angustiado e
vacilante. Toda sua vida jamais tivera a coragem para dizer ou
sustentar sua opinião frente aos
demais nos menores e mais
insignificantes assuntos. Como
agora tomar uma atitude sozinho?
Por fim decidiu—se a procurar Frei
Antônio.
O crepúsculo descia sobre aquela
parte da terra e as primeiras
estrelas já começavam a aparecer.
Indiferente às belezas primaveris
que floriam nos jardins suntuosos
do castelo, o jovem Roberto
caminhou nervosamente a passos
rápidos.
Ia a pé, cabeça descoberta, olhos
voltados aos seus próprios
problemas. Teve, porém, sua
atenção atraída por um rumor
desusado de cantos, violinos, risos
e alegria, tudo cadenciado ao ruído
de cascos de animal e rodas que
gemiam ruidosamente.
Surpreendido, buscou com o
olhar descobrir de onde ele se
originava. Cruzando o caminho
numa das curvas da estrada, uma
caravana caminhava
vagarosamente.
— Ciganos — pensou ele. Ficarão
aqui, na aldeia?
Os ciganos sempre o fascinavam.
Sonhador por natureza, imaginava
que a vida dos ciganos fosse cheia
de encantamento e de
irresponsabilidade, o que muito o
atraía. Não via a precariedade de
conforto, de higiene, de cultura
que possuíam. A monotonia de
caminhar errantes, tornava igual
todos os lugares por mais díspares
que fossem. Um povo inculto,
faminto, quase órfão, que apesar
disso ria e cantava, vendendo a
alegria e a arte para ganhar o pão.
Mas, para Roberto, vida fácil,
bem alimentado, suntuosa casa,
muitas terras, excessos de bens
materiais, os ciganos
transformavam—se em reis da
liberdade, em donos de si mesmos.
Naquele instante, olhando as
carroças que lentamente seguiam
vistas àquela distância como que
recortadas no céu chamejante do
entardecer, Roberto pensou em
como seria feliz se tivesse nascido
cigano, sem preconceitos de
nenhuma espécie.
Uma vez, na infância, vira na
aldeia um cigano que acampara
naquelas paragens, enfrentar
sozinho seis homens, vencendo— os, apenas porque lhes ouvira um
gracejo insignificante. Diante de
tanta demonstração de coragem,
em seu espírito se gravou o cigano
como um símbolo de força, de
valentia e de ousadia.
Caminhou na direção das
carroças, fascinado pela alegria
que lá reinava, num desejo
incontido de esquecimento. Desde
sua infância que os ciganos não
mais haviam voltado a Ateill, iriam
acampar ali?
Percebeu, depois de alguns
minutos, que carroças saiam da
estrada, entravam por um campo
aberto formando um círculo. Iam
acampar. Por quanto tempo?
Permaneceu à distância
observando—os.
Alguns homens, mulheres e
irrequietas crianças haviam saltado
das carroças e cuidavam da
instalação do acampamento.
Um homem alto, forte, de meia—
idade, barbado, olhos vivos de um
azul muito escuro, trajado de
roupas vistosas, com o peito
coberto de correntes douradas e os
dedos cheios de anéis, com um
pequeno açoite nas mãos irrequietas dava ordens em alta
voz. Em poucos minutos, havia
uma fogueira crepitando no centro
do acampamento e o cheiro
gostoso de carne assada
impregnava o ar.
Roberto sentou—se distraído e
continuou observando a azáfama
dos ciganos.
Estavam agora comendo sua
refeição e ouvia—se o riso das
mulheres, o alarido das crianças e
a palestra animada dos homens,
entremeadas de pragas e
palavrões. O ambiente era
característico; o ar impregnado de
fumaça, os homens, cheirando a
vinho e a carne, vestidos com
roupas coloridas, eram iluminados
pela luz bruxuleante das chamas
da fogueira que lambiam o ar
emprestando ao ambiente um
aspecto irreal, exótico.
Roberto lembrou—se por fim de
que precisava ir ver Frei Antônio,
mas já agora sem muita vontade.
Sabia o que ele certamente lhe
diria. Conhecia—lhe o palavrório.
Aconselharia a renúncia, o
esquecimento, o lembrar—se
sempre dos sofrimentos de sua mãe, a paciência, o respeito aos
deveres filiais. Não. Ele não
desejava sermão.
Estava no cimo de uma elevação
bem próxima a aldeia. De lá, o
jovem Roberto, sentado no tronco
de uma velha árvore, podia
vislumbrar—lhe as casas, agora já
banhadas pelo magnífico luar.
De repente, percebeu que um
vulto caminhava lentamente em
sua direção. Assustou—se um
pouco, mas esperou. Fixando
melhor, percebeu que era um
homem ainda moço, forte e
moreno. Quando ele se aproximou
mais, pôde vislumbrar—lhe o rosto
bem barbeado, a roupa asseada.
Viera do acampamento cigano,
mas, apesar das roupas um pouco
semelhantes, não parecia cigano.
Não usava jóia e nem botas.
Calçava sandálias de couro.
Aproximando—se mais, sorriu
amavelmente para Roberto que lhe
retribuiu o sorriso, reconhecendo
que seu rosto inspirava confiança e
simpatia.
— Incomodo? — perguntou o
recém—vindo.
— De maneira nenhuma,
— Estava admirando a beleza deste
lugar. Que calma, que serenidade
nos proporciona ao espírito!
Roberto sorriu descrente:
— Acabais de chegar, mas eu que
vivo aqui, acho a aldeia monótona
e triste.
— São pontos de vista, meu jovem
senhor.
Roberto viu que os olhos do
interlocutor brilhavam
amavelmente com alguma ponta de
malícia.
— Não sou tão jovem como
pensais, logo completarei vinte
anos!
— Não foi minha intenção ofender—
vos. Apenas, não sabendo como
chamar—vos...
— Apresento—me — e levantando—
se — sou Roberto Chãtillon, filho
único do Duque de Merlain.
O outro se inclinou elegante.
— Eu sou apenas Ciro. Tenho
imenso prazer em conhecer—vos.
Roberto inclinou—se levemente.
— Obrigado, senhor.
O assunto morreu por alguns
instantes enquanto ambos
procuravam instintivamente
analisarem—se.
Por fim, Ciro com um gesto largo
designando o local onde Roberto
momentos antes se sentava,
disse—lhe:
— Vejo que sois amantes da
solidão. Lamento haver
interrompido vossa meditação. Mas
retiro—me em seguida.
— Não, por favor. — murmurou
Roberto impulsivamente — não se
vá.
Não desejava que o desconhecido
se fosse porque ele representava
novidade, distração. Depois,
poderia informar—se sobre a vida
fascinante dos ciganos, esquecer
pelo menos por instantes seu
doloroso e quase insolúvel
problema. Ficar novamente só
representava voltar á realidade.
— Não gosto da solidão, pelo
contrário, detesto—a! — Havia uma
nota amarga em sua voz e suas
preocupações haviam—no feito
esquecer a timidez.
— A solidão é nossa melhor amiga.
E nela que costumamos nos
aprofundar na compreensão de nós
mesmos, é através dela que
restabelecemos o equilíbrio do
nosso espírito para podemos agir
sempre com serenidade.
— Depende de quem somos e da
vida que levamos. Quando somos
feridos pelos golpes rudes do
destino, ela nos prejudica tornando
sempre presente nossa dor.
Ciro familiarmente sentou—se ao
lado do jovem aristocrata. Seus
olhos refletiam simpatia e doçura.
— E crês por ventura que a fuga é o
melhor remédio? Quando nos
evadimos voluntariamente da
realidade porque ela nos é penosa,
criamos a necessidade constante
de um mundo ilusório, palpitante,
atordoante, que absorva todos os
pensamentos, mas aos poucos esse
viver nos esgota, o cansaço nos
atormenta e nos tomamos
trôpegos escravos: fugitivos de nós
mesmos. Quando caímos por fim
sem forças, verificaremos que os
velhos problemas ainda
permanecem.
Roberto ouviu surpreendido as
palavras do interlocutor. Sua voz
clara e serena balsamizava—lhe o
espírito vacilante e cansado.
— Vossas palavras são pessimistas.
O que fazer então?
— Enfrentar a realidade. Vencê—la!
— Mas, como?
— Obedecendo nossa consciência,
estaremos agindo sempre bem.
Afinal, o que são alguns poucos
anos aqui na terra frente à
eternidade?
Roberto, ferido ainda pelo
desgosto de algumas horas antes,
aduziu amargo:
— Existirá mesmo esta eternidade?
Às vezes penso que ela é um ardil
com que os homens tentam
amedrontarem—se uns aos outros
para protegerem—se
reciprocamente. Com receio do
inferno ou interessados em obter
um lugar mais agradável no céu,
eles se comporiam melhor!
— Ah! Meu amigo, se os homens
acreditassem realmente na
eternidade da alma e de Deus, se
tivessem temor ao inferno e desejo
real de irem para os céus, os
crimes e as maldades teriam
desaparecido da face da terra!
Interessado no ponto de vista do
seu interlocutor, tão diferente dos
demais, ele perguntou:
— Acreditais no inferno?
Havia um princípio de zombaria
na sua voz.
— Sim. Porém, ele não é como
imaginais. Ele é uma escola onde o
homem aprende a viver, reeduca
seu espírito refazendo—se com o
próprio esforço para conseguir
errar menos e ter mais sabedoria,
ser mais feliz.
Mas, como podeis acreditar
nisso? Nunca ouvi doutrina mais
exótica. Podeis provar o que
dizeis? De onde tirastes tais
conclusões?
— Da vida. Ela nos ensina a cada
passo e, ainda mais, de um
pequeno livro que se chama o Novo
Testamento.
— O Novo Testamento?
— Sim. Um dos livros da velha
Bíblia.
— Ah!... — Roberto permaneceu por
instantes meditando, depois
tornou:
— Estranho... Um só livro provocar
tantas dissensões, tantas religiões,
tantas opiniões contraditórias...
— Já os lestes?
— Não. Sou católico. Mas, fala
mais, explica—me mais tua
filosofia.
— Não posso explicar—te em
algumas palavras a ciência de
viver, o porquê das nossas dores,
as leis que regem este mundo,
porém, posso dizer—te que elas
são sábias e perfeitas como seu
Criador. Se sofremos, apenas
colhemos o que plantamos. Se vivemos neste mundo, que sem
dúvida representa aos olhos de
muitos uma das repartições do
inferno quando deveria ser a
escola, a luta em busca do
progresso espiritual, é porque dele
necessitamos para aprender a
viver melhor, e para resolver
os assuntos que deixamos
inacabados em outras existências
que já vivemos.
Roberto estava estupefato.
— Mas, por que dizem que o
inferno é o fogo eterno, onde está
o fogo neste mundo, se é que ele é
tão mau assim...
— Eu não acredito que o inferno
esteja neste mundo. Ele está sim
no coração do homem. O mundo é
belo, perfeito, puro, pois que é
obra de Deus que o criou para nele
sermos felizes. Fez—nos em
embrião para que
desenvolvêssemos nossas
faculdades latentes no bem. Deu—
nos liberdade de ação para
angariarmos com o nosso próprio
esforço a experiência. Assim, sem
conhecer bem a realidade, o
homem salta do bem para o mal e
colhe as conseqüências dessas
ações. Mas, o fogo do inferno
existe na fervescência das paixões
humanas, no âmago da
personalidade de cada um que erra
porque ignora, às vezes, mesmo a própria extensão do seu erro.
Então, volta a este mundo—escola
quantas vezes for preciso para
aprender. E como aprender senão
pela própria experiência? O
sofrimento ensina mais do que
muitos sermões bem mastigados,
porque egoístas e desconfiados
que somos, sabemos somente crer
e sentir aquilo que nos atinge.
O silêncio fez—se espontâneo por
alguns instantes. Pensando em seu
pai, que agora desprezava ainda
mais, o jovem Roberto aventurou:
— Mas, por que acreditais existir
um inferno no fogo das paixões?
Não proporcionam elas gozo a
quem as possui? Não tripudiam às
vezes sobre os sentimentos
humanos e são bem—sucedidos?
Pelo menos conseguem o que
desejam seja como for.
— Meu amigo, vejo que conheces
apenas a superfície, a aparência. O
fogo dos vícios a que o homem se
escravizou, torna—o infeliz e
insatisfeito. Rouba—lhe a
serenidade, a paz, obriga—o a
violentar a própria consciência
para servir ao desejo, às
exigências cada vez maiores das
suas paixões. Elas queimam, não satisfazem, pelo contrário,
aumentam a sede.
— Serão então infelizes ou será a
própria encarnação do demônio?
Ciro, olhos postos no infinito,
parecia quase irreal naquele
cenário agreste, sob o luar. Seu
aspecto sereno, belo, o tom firme e
convicto de sua voz,
impressionaram profundamente o
cérebro nervoso e tímido do jovem
Roberto. Foi com atenção e
respeito que se ouviu a resposta
pausada:
— Realmente, nós temos muito de
demônios em nossas ações,
entretanto, apenas posso definir
isso tudo em uma palavra:
ignorância! O homem vive neste
mundo guiado pelo instinto. Seu
raciocínio e moroso, mas não tanto
que o impeça de sentir as
conseqüências de suas ações,
porém, habituado a lutar para
conseguir ganhar seu pão, ai
colocou a finalidade da vida, como
se ela se resumisse somente numa
única e curta existência aqui na
terra. Ora, a vida é infinita como o
próprio Criador e é nesse sentido
que o próprio livro sagrado nos orienta quando diz textualmente:
Deus criou o homem à sua
semelhança.
Admirado, o rapaz interrompeu:
—Tendes uma doutrina estranha! E
a velha história de Adão e Eva e do
barro?
— Acreditas porventura que o
infinito Criador de todas as coisas
possua um corpo semelhante ao
nosso?
— Não compreendo. Se ele nos
criou à sua semelhança,
naturalmente seremos iguais a ele,
mas, nós morremos... Como pode
ser isto?
— Enganamos—te, nós somos
imortais, somos eternos, o que
chamamos morte é apenas o
desgaste deste corpo de carne que
nos foi dado para que nesse mundo
pudéssemos aprender, por
determinado tempo, as
experiências de que necessitamos.
Roberto abanou a cabeça
incrédulo.
— Dizeis coisas estranhas, não
posso compreendê—las...
Ciro sorriu de leve.
— Tens razão. Deixei—me seduzir
pelo prazer da palestra, mas não estás ainda preparado para estas
revelações. O assunto é fascinante,
porém, requer esforço e estudo.
Venho estudando, observando os
longos anos e, no entanto pouco
ainda consegui compreender. Não
poderia esclarecer—te em poucas
palavras.
— Vossa doutrina é contrária a
todos meus princípios religiosos,
entretanto, talvez por isso mesmo,
gostaria de conhecê—la melhor.
Levantando—se, Ciro pousou a
mão sobre o ombro do rapaz:
— Pois venha procurar—me
quantas vezes quiser. Ficaremos na
aldeia durante algum tempo. Podes
ir ao acampamento sem receio.
Basta dizer que és meu amigo.
E antes que o jovem pudesse
dizer algo mais, Ciro desceu a
encosta rumo ao acampamento
agora já animado apenas pelo som
de um violino triste e apaixonado.
— Criatura estranha. — pensou
ele... — Não é um cigano
certamente. O que fará então no
acampamento?
Parecera—lhe um homem culto e
inteligente, entretanto, que idéias
extravagantes possuía! Haveria de voltar brevemente para conhecer
de perto o acampamento e travar
relações mais íntimas com ele.
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O Morro das Ilusões
SpiritualLivro de 1969 A alma cigana e o mistério de sua amiga! Quem de nós não se fascina? No fundo do coração, aquele especial sentimento: Será que já não estivemos entre eles? Por isso, os personagens deste livro, são como velhos conhecidos nossos, acorda...