Dona Lúcia estava encostada na porta da cozinha. A antiga cortina que agora servia de avental, estava apertada entre sua barriga e a porta, transferindo para a madeira a manteiga de gado que havia sido derramada sobre ela minutos atrás. Costumava deixar apenas a parte de cima aberta, pois a de baixo servia para impedir a entrada das galinhas. Ou era o que ela dizia, já que mais parecia um meio de vigiar os passos de Valmir, seu marido. Justamente como fazia naquele momento.
Ela o cuidava bem. Todo dia tinha a hora marcada do café da manhã, almoço e jantar. O do meio era o que mais lhe dava trabalho, precisava gritar Valmir três ou quatro vezes até que o danado largasse a foice e viesse comer. Isso quando o encontrava entre o capim búfalo, quando não, olhava para um lado, fazia uma sombra sobre os olhos para avistar melhor e perdurava ali, até virar para o outro lado e fazer a mesma coisa, parando somente quando o trazia para casa. Vez ou outra botava as mãos na cintura e reclamava da teimosia de seu marido, afinal todo mundo sabia que meio dia era a hora sagrada. Nenhum minuto a mais ou a menos.
Na mesa, nada muito sofisticado. Arroz, feijão, uma galinha caipira dividida para dois dias e as vezes um macarrão e um tomate misturado com alface. Não tinham muito dinheiro como alguns vizinhos, mas também não eram tão amaldiçoados. Acreditavam que o número de bodes na roça não dizia muito, pois a verdadeira riqueza estava na forma que ela, Valmir e seus filhos tratavam os outros. Tinha até uma história que exemplificava muito bem o tipo de caráter pregado dentro daquela casa:
Uma vez plantaram melancias em quase um hectare e pense numa colheita boa! Venderam em preço justo e espalharam até no vento, para quem quisesse. Bem no fim, quando haviam poucas melancias, um vizinho mandou o filho dele chamar Valmir para ajudar no nascimento de uma bezerrinha. O guri, vendo umas sete melancias no piso da sala, pediu uma a um dos filhos de Dona Lúcia. Era o menorzinho, não tinha aprendido muito o jeito que a mãe fazia as coisas, então pegou a melancia do canto, que parecia meio chocha, e entregou para o outro menino. Sorte dele que Dona Lúcia viu o moleque na saída do quintal e mandou ele voltar. Jamais deixaria que ele levasse aquela melancia. Não porque tinha medo do que iam falar, mas porque qualquer pessoa merecia o melhor que ela tinha a oferecer, sem restrição, sem medir maldade ou qualquer outra coisa. Foi lá, pegou a mais bonita, deu dois petelecos tentando ouvir o som de tambor que indicava a boa qualidade da fruta e finalmente satisfeita, entregou ao menino. Ele saiu andando ainda mais feliz do que antes, apesar de Dona Lúcia ter serias dúvidas se ele aguentaria o peso até chegar em casa.
Era de dar gosto aquela família. Conseguiam ser felizes até quando a seca estalava cada mandacaru e nenhuma flor aparecia para dar esperança. O gado mal andava, os ossos quase rasgando a pele. Não tinha água na barragem, mas tinha no poço catavento do outro lado da roça. Não tinha pasto, mas Dona Lúcia continuava ajudando Valmir cortar palma e trazer fecho de capim nas costas até o curral, as vezes até conseguindo vê-lo sorrir enquanto ouviam piadas ruins na rádio. Podiam pensar que para todo contratempo, Deus dava uma solução. Sofrida, mas dava.
Parecia até fácil viver no sertão de Dona Lúcia, mas a verdade é que não era. Não para aqueles que não sabiam agradecer.
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