Na solidão da natureza morta

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Como um fantasma que se refugia.
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Augusto dos Anjos


Não havia mais esperança em seu coração, tudo o que um dia foi, o que era e seria, se foi com ele.

Ela se sentia viva quando ele estava perto, se sentia respirando e imortal. Ele era seu mundo e ele se foi. Anne não viu chegando...

Mas foi naquele momento, em que tudo se apaga da sua mente, quando as lágrimas cegam e quando o coração esmigalha, no momento em que nada mais fazia sentido, que inesperadamente ela se deu conta. Caminharia naquele mundo agora apagado, sozinha.

Sufocou sua necessidade de cair, abraçou a si mesma, engoliu o desespero e assistiu impotente com seus olhos quase cegos pelas lágrimas, pela chuva e pela dor, o caixão descer para a sepultura lentamente.

Ela estava só, não apenas só em sua tristeza infindável, mas literalmente só, já que apenas ela e os dois coveiros estavam presentes no enterro, completamente só. Era um fato. Dae descia para a terra e para o descanso e ela foi deixada para trás, sem poder segui-lo. Anne queria, desejava segui-lo, mas ele jamais teria a perdoado, não depois de tudo o que passaram juntos. Ele ia, ela ficava, era frio e simples assim.

Saber daquilo não fazia diferença nenhuma.

A dor a consumia como fios de aço em suas entranhas, a dor a sufocava. E então, quando jogou o cravo que segurava sobre o caixão negro e observou, desesperada, a terra cobrir seu corpo, ela achou que tudo que restava de si se esvaia como com cada pá de terra, ele ia mais longe até que tudo o que restava era a terra batida.

Ela esperou mais alguns minutos, para ser capaz de andar e então contornou a cova e seguiu pelas lápides evitando olhar para o chão, evitando agir, evitando pensar. Saiu do cemitério mecanicamente, contornou o lugar imenso o mais normal que foi capaz e só respirou de verdade quando entrou no carro e se trancou lá dentro. Estava feito.

Tinha conseguido e aquele era o fim. Seria capaz de algo mais do que ficar ali e chorar?

Precisava chegar em casa, precisava ser capaz de ao menos encaixotar as coisas dele, mas... Teria forças? Teria coragem?

Não soube como conseguiu retornar para a casa que tinha em cada canto, cada cômodo a essência dele, a casa que ele escolheu aos pés da montanha alta que lhe lembrava lar e estava isolada no extremo sul da cidade. A casa em que viveu aqueles anos maravilhosos ao seu lado e que agora seria um lugar fúnebre para onde não desejava, mas precisava retornar pois não tinha coragem ou frieza para sair dali, não agora, talvez nunca. Talvez só saísse se fosse por outras mãos e em um corpo vazio de alma. Já era um corpo vazio, sua alma tinha ficado lá, junto dele naquele chão frio e terroso.

Deitou-se no tapete e lá ficou olhando para o nada e para tudo. Olhando para o infinito sombrio de seus dias futuros.

Dormiu, acordou e voltou a dormir, o dia se transformava em noite, as noites em dias e só se levantava quando a fome a obrigava ou quando o corpo exigia se cobrir.

Não soube exatamente quando começou, mas em um determinado dia, se deparou com algumas flores em sua porta, sua letargia a forçava a ignorar, mas sua alma, aquele mínimo pedaço que ainda insistia em existir se compadeceu da pessoa desconhecida que a presenteava daquela forma, assim passou a recolher as flores e colocá-las no vaso da sua sala. Aquela se tornou sua única atividade e exigência, já que resolveu abandonar todas as outras. Acordava, recolhia a flor do dia e voltava a chorar na sala.

Pediu demissão do emprego, se desconectou da sua vida do lado de fora e só desejava que o que restava dentro também se fosse. Entretanto havia a pessoa desconhecida das flores e até que ela parasse de lhe trazer aquele pedaço de beleza do mundo de fora, ela deveria continuar também a manter as flores do lado de dentro, não?

E foi assim que despertou naquela manhã, pronta para recolher sua flor diária e ficou parada diante da porta imaginando se já estava deixando aquele mundo e ficando louca em seu fim.

Um gato negro, imenso estava deitado na sua porta e a olhou curioso quando abriu a madeira distraída. Ela podia ver sua pata dianteira machucada e ele a olhava com seus profundos olhos verdes em um pedido mudo que ela ainda entedia por que sempre preferiu os animais, aos humanos até conhecer seu Dae.

Olhou para todos os lados e respirou fundo, estava na montanha afinal, animais dividiam aquele espaço também, ela era a invasora e agora devia ajudar aquele gato, mas a pergunta era, estava em condições daquilo? E ele? Seria feroz?

Então como se lesse seus pensamentos ele abaixou a cabeça, respirou fundo e ela fez o mesmo. Ainda era uma fraca de coração mole...

— Muito bem gatinho, venha, vamos cuidar dessa pata.

E ela deu passagem ao enorme gato que se ergueu meio instável e passou pela porta lentamente.

Anne ia fechar a madeira e se perguntou se ele tinha comido a flor. Mas então ela viu uma margarida encostada na parede mais na lateral e sorriu, não, sua pessoa misteriosa colocou a flor em outro canto.

Foi até a flor branca e amarela e também a trouxe para dentro afinal o mais importante em sua vida agora vazia, eram as flores que recebia todas as manhãs.

Sussurre meu nomeOnde histórias criam vida. Descubra agora