Um

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Amigo:

Não sei quanto tempo passou. A minha mãe diz que decorreram dois mil novecentos e vinte dias desde que fechei os portões da minha antiga casa. Desde que brincámos às corridas no mato juntos uma última vez e desde que, consequentemente, te disse adeus. Ou melhor, desde que não tive a chance de me despedir. Porque eu fui naïve ao ponto de pensar que continuaria a manter o contacto contigo. Sei lá, éramos crianças. Tudo era possível naquela época, não? Pensava eu ser capaz de comprar um dragão ou roubá-lo a um dos deuses daqueles templos, como aquele assombrado que havia no meio da nossa floresta, onde as pessoas vão colocar moedas e depositar desejos, para poder voar até aí e irmos esfolar os joelhos a cair de árvores, desta vez sem ouvirmos as vozes enfurecidas das nossas mães no final do dia e sem ficarmos com os rabos vermelhos (ainda assim, acabávamos por sorrir feitos idiotas quando íamos dormir porque amanhã haveria muito mais).

Mas a vida vai-nos tirando as maravilhas dos olhos. Aquilo que perspectivávamos como milagre ou magia passa a fazer sentido à nossa razão. Passa a ser medíocre. E as nossas pétalas vão fechando até estarmos cobertos pela escuridão que é a puberdade e a fase adulta. Não queremos voltar a estar em flor. Não sentes isso também, Jiwon? Não tens medo de voltar a ter esperança na vida? Eu tenho. Normalmente isso magoa. A propósito, tenho uma coisa a confessar: para além de ter perdido a esperança na vida, perdi a esperança nas pessoas. Acho que deixarmos as nossas pétalas fechar também nos tira um pouco o tacto e acabamos por ferir-nos uns aos outros. As pétalas costumam tapar os espinhos que existem no caule, mas temo-las fechadas. Quando uma pessoa nos tenta abrir as pétalas para espreitar por nós adentro, nós acabamos por lhe dar uma ferroada, com ou sem querer. Falo por mim, pelo menos. Mas eu sempre fui um tipo mais fechado. Tu eras mais dado, pelo que eu me lembro.

Reflectir nestas últimas palavras faz surgir no meu coração um pingo de amargura. Pelo que eu me lembro. Eu sabia tudo sobre ti. Éramos melhores amigos, afinal. Tu sabias até de que cor era o cabelo mais à direita no meu cocuruto e eu sabia o teu segredo mais vergonhoso: tinha-te nascido um dente no céu-da-boca e tiveste de o arrancar, o que resultou num Jiwon a fazer um escarcéu no consultório do dentista. Engraçado como me consigo lembrar disso, de como eras mais cheiinho, mas corrias mais do que uma chita e tinhas mais força do que um rinoceronte (a tua mãe dizia que era porque comias demasiado), mas não me consigo lembrar do teu rosto, do formato dos teus olhos nem da cor da tua gargalhada. Levei o teu endereço escrito num papelzinho amarrotado no caso de me esquecer de onde vivias, mas não só me esqueci da tua morada como perdi o papel por negligência. Os dias foram passando e viraram meses e os meses viraram anos também. Com os problemas que ia juntando atrás das costas, à mistura com o desabrochar da adolescência, tudo aquilo que sabia sobre ti começou a ficar esborratado e eu também não me alarmei com isso. Apenas deixei andar. Envio uma carta amanhã (onde está o papel do endereço mesmo?). Ou talvez depois de amanhã. Quem sabe durante este fim-de-semana tenha tempo depois de lavar o chão do quarto e colocar, também, a minha alma no cesto da roupa suja, que ela bem precisa. Acho que sempre tive esse defeito: dava demasiado ouvidos aos meus problemas e eles acabavam por me cegar e não conseguia ver nem pensar em mais nada que não naquilo. A diferença, amigo, é que tu, antigamente, estavas a meu lado e o teu riso era como uma ventoinha, que dissipava todo o fumo que me bloqueasse a vista, por mais espesso ou negro que fosse. Eu não te tive lá e, aos poucos, fui fechando as pétalas e empurrando-te para fora da minha vida. Por isso apresento agora as minhas sinceras desculpas por causa disso.

Eu sei... Para além de cartas, quando fôssemos mais velhos, podíamos até falar pelas redes sociais, pelo telemóvel, por chamadas de vídeo... Podia ter-te mantido perto, mas não o fiz. Nas horas mais negras, tive vontade de te culpar por isso, mas a verdade é que eu é que teria de avançar primeiro. Se nem eu sabia para onde ia viver quando me fui embora, quanto mais tu. Eu é que tinha o teu endereço. Podia ter procurado por ti e não o fiz. Isso gerou em mim uma revolta colossal e o facto de já não poder fazer nada para mudar isso – tinha perdido oficialmente o papel com a informação – só resultou em que eu desistisse. E deixei andar. E deixei-me esquecer. Mais uma vez só consigo pedir desculpa e escrever esta carta idiota porque não tenho coragem de te olhar nos olhos. Temo, até, que já não te vá reconhecer. Ouvi dizer que estavas bem diferente. E tu, Jiwon? Irias reconhecer-me? Talvez conseguisses. Sempre foste muito atento. Dizias que eu era snobe às vezes. Para tua informação, só piorou com a idade. Conseguirias reconhecer-me a quilómetros e virias dar-me um abraço. Ou talvez não.

Talvez também tenhas fechado as pétalas como eu porque a vida é cruel com todos e deixa cicatrizes em todo o ser que respire, denotativa e conotativamente falando. Talvez já não berres o meu nome caso me vejas a caminhar no final da rua, talvez já não venhas a correr para me asfixiar debaixo do teu braço. Talvez já não queiras ouvir que passei a escoar os meus sentimentos para o papel e que comecei a desenvolver a escrita. Na volta só vais pensar que é por isso que esta carta soa tão pomposa. Provavelmente até estás magoado comigo. Nem me deves querer ver à frente. O meu peito dá um nó quando penso nessa possibilidade.

Estou de volta a casa agora, mas sinto como se nada me fosse familiar. Como se não estivesse vinculado aqui, como se não tivesse nascido e crescido neste lugar. Antes da viagem de regresso, peguei no álbum de fotos e percorri o olhar por aquelas que tirei contigo e, assustadoramente, senti que já não tínhamos nada a ver um com o outro. Que não sou a mesma pessoa e tu também não deves ter permanecido igual. Que eu agora tenho outros amigos e tu outros amigos tens. Quiçá tenhas passado por mais dificuldades que eu e te tenhas fechado muito mais (quantas vezes deves ter desejado que eu estivesse aí). Pensei que iria encontrar conforto quando voltasse a passar os portões que tinha deixado há oito anos, mas a imagem deles ainda me faz pesar mais a alma. Amigo, posso até ter dito que achava que já não estava ligado a ti, mas a verdade é que não fará sentido eu ter voltado se não tiver a tua amizade. Não é a cidade que é a minha casa. Não é a minha casa que é a minha casa. É a minha infância que é o meu abrigo, o meu farol nos dias de tempestade. E a tua amizade faz parte da minha infância, então tu também és a minha casa. Entendes o que quero dizer ou estou a soar demasiado confuso? Só me sinto genuinamente feliz quando me lembro do tempo em que nada importava e em que eu só me ria. Posso não me lembrar de muita coisa, mas sei que estavas sempre ao meu lado e eu ria contigo. Definitivamente fazes parte da porção de felicidade que me falta no peito.

Tenho medo do que pode acontecer daqui para a frente. De que a boa impressão que tinha da nossa amizade fique manchada pela estranheza do reencontro. Confesso que me acobardei e escrevi esta carta porque tenho medo de olhar para ti e, caso te reconheça, perceber que, realmente, as coisas não são mais o mesmo nem voltarão a ser. Não consigo encarar a dor muito bem e, sinceramente, não me apetece escrever outra canção com letra triste e batida alegre, que é o que melhor faço quando estou de coração partido.

Escrevo, sobretudo, para que, mesmo que as coisas não funcionem de novo, fique feito o meu pedido de desculpas. Tardio, mas vero. Desculpa por todas as vezes em que não estive aí para ti. Por todas as vezes em que choraste escondido porque só te sentias à vontade para o fazer comigo por perto. Por todos os momentos de solidão, desamparo e incompreensão. Acredito que tenhas os teus bloqueios comigo agora.

Por outro lado, se as coisas encaixarem de novo, então peço-te, amigo, que não desistas de mim, que eu também não vou desistir de ti. Fomos os dois esbofeteados pela vida – disso tenho eu a certeza –, mas coloquemos os escudos de parte aos poucos. Somos indivíduos muito mais complexos agora, então tenhamos paciência um com o outro como irmãos que fomos e irmãos que (ainda quero acreditar que) somos.

Se realmente me perdoares, vem ter comigo ao sítio do costume. Lá te esperarei.


Do Bin, com muitas saudades.

Memento [HIATUS]Onde histórias criam vida. Descubra agora