Quatro

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Hanbin abriu os olhos lentamente, despertando não só pela voz da mãe através da porta, que o vinha chamar para ir às aulas, mas, uns momentos depois, pela luz que entrava pelas fissuras dos seus estores, pousando directamente no seu olho esquerdo quando o rapaz se acomodou para dormitar durante mais uns minutos. A discrepância entre a claridade de um lado e a escuridão do outro fazia-lhe impressão e, sobretudo, irritava-o, por isso, Hanbin não demorou a sentar-se, os olhos a abrirem-se preguiçosamente para fitar o quarto que tinha sido seu em tempos idos, ainda vazio de mobília, porém cheio de caixas, observando, também, os grãos de pó a dançar nos raios de luz que a manhã trazia para dentro da divisão. As paredes continuavam em tons de amarelo pastel, sem uma única mancha de humidade ou alguma rachadura de um tremor de terra. Era como se, dentro daquela casa, o tempo tivesse parado, esperando que a família Kim voltasse ali.

Devia só ter conseguido dormir umas três ou quatro horas. A noite anterior tinha sido demasiado avassaladora para ele. Levantou-se com alguma dificuldade (e, convenhamos, umas leves dores de cabeça), caminhando até à casa de banho, onde colocou os óculos. Quando se olhou ao espelho, soltou um suspiro. Tinha-se esquecido de que Jiwon lhe tinha rachado as lentes completamente e agora via uns quinze exemplares dele mesmo com sangue seco à volta das narinas pelos óculos. Similarmente à noite anterior, começou a sentir o peito apertar, como se quisesse estrangular-lhe o coração. O que mais odiava depois de uma noite de discussões, fosse com quem fosse, era acordar no dia seguinte e ainda se lembrar de todos os pormenores, o que resultava naquela sensação terrível no peito. Odiava lembrar-se da escaramuça que vira entre um gangue e um homem debaixo de uma árvore, do murro que tinha levado no nariz por parte de Jiwon, do melhor amigo a olhar para ele, totalmente desnorteado e assustado, como se tivesse visto um bicho. Talvez Hanbin fosse mesmo um bicho. Talvez merecesse aquele tratamento depois de ter desprezado Jiwon durante tanto tempo. Respirou fundo antes de tirar os óculos e mergulhar o rosto na água corrente e gelada da torneira do lavatório. Precisava de se recompor. Mais: precisava de pensar numa desculpa suficientemente boa para dar à mãe, já que os seus mais recentes óculos se tinham quebrado numa questão de cinco meses e ele sabia que estava condenado.

Retornou ao quarto depois de limpar o sangue seco das narinas com um cotonete e soro fisiológico, vestindo-se, penteando-se e tentando ao máximo forçar uma expressão normal. Não precisava de muito esforço. Desde sempre que ouvira dizer que tinha cara de porta. A diferença é que, quando algo de mal se passava no seu interior, os seus olhos ficavam consideravelmente mais baços. Tentou transportar-se para um sítio feliz. O dia em que recebeu o seu primeiro GameBoy, talvez? Hanbin lembrava-se de ter chorado de felicidade, já que, quando morava em Moojin, não havia muitas tecnologias por ali, mas isso não bastava. Aquilo que lhe trazia felicidade genuína incluía ele mesmo, Jiwon e uma quadra de basquete. Lembrara-se disso quando estava a fazer a mudança de volta para a aldeia. O problema é que, agora, aquelas memórias felizes estavam mescladas com uma neblina de mágoa. Já não funcionariam. De qualquer maneira, tanto fazia. Deu umas palmadas nas bochechas para se concentrar e forçou um olhar mais vigoroso, pelo menos o suficiente para parecer imperturbável como sempre parecia. Entrou na cozinha, cumprimentou a mãe, o pai e Hanbyul, a irmã mais nova. Não queria ficar muito tempo ali, por isso, comeu o mais depressa que conseguiu sob o falso pretexto de que não se queria atrasar para as aulas, que já bastava estar a entrar quase um mês depois de o ano lectivo ter começado. A mãe reparou que Hanbin ia sem óculos para a escola e ficou automaticamente aborrecida, mas o rapaz apressou-se a dizer, enquanto colocava a mala às costas e acabava de mastigar a última colherada de arroz, que tinha apenas caído de uma árvore. A senhora franziu o sobrolho, completamente confusa, mas não teve tempo de voltar a resmungar com ele porque o filho saiu disparado.

Hanbin, por sua vez, conseguiu fugir aos questionamentos da família, mas da maneira mais idiota possível. Saiu, então, dos portões agora velhos da sua casa, a bater com o punho na testa. Mas claro que ele subiria a uma árvore do nada para partir os óculos. Quem, com quatro dedos de testa, é que não faria isso? Mas era óbvio! Claro que era! Hanbin era mesmo idiota. Sabia que iria sobrar para ele quando chegasse a casa. O dia mal tinha começado e já estava a ser uma autêntica porcaria. Aliás, o dia ainda nem tinha começado e já se tinha tornado num grande incómodo porque o rapaz sabia que aquela sensação no peito não o deixaria em paz durante um longo tempo, embaciando-lhe os olhos e impedindo-o de sentir qualquer outra coisa para além do vazio. Como se isso não bastasse, o facto de não estar a usar óculos ainda lhe estava a aumentar mais as dores de cabeça - que já tinha desde que se levantara por causa das poucas horas de sono -, para não falar de que, sem as lentes, não via bem e, naquele momento, estava a caminhar por uma selva de borrões de casas e pessoas. Já não bastava Hanbin ter um ar snobe, ainda tinha de andar com os olhos semicerrados para ver alguma coisa de jeito, o que lhe adicionava um ar ainda mais odiável. Se calhar era por isso que apanhava tanto quando era pequeno: por andar sempre com os olhos espremidos, que adicionavam mais um traço relevante à sua personalidade de "nariz no ar".

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