Três

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O céu estava cinzento-escuro. Ia de mal a pior. Decerto começaria a chover em menos de nada. Soren sabia-o porque observava tudo da janela da esquadra, do lado oposto ao seu, abraçada a si mesma devido ao frio que se fizera sentir de repente na última meia hora. Tinha a certeza de que se fosse alguma mulher sem sal já lhe teriam dado uma manta para, ao menos, tapar as pernas, mas não. Era vista como uma criminosa. Mais do que isso até: como a pior criminosa dos piores criminosos. Isto tudo porque foi apanhada a meter ao bolso uma simples barra de chocolate numa loja de conveniência. Sentia-se injustiçada e tinha vontade de chutar as grades que a encarceravam ali, mas a inércia que nela reinava impedia tudo aquilo.

Não sabe quanto tempo passou. Só sabe que se permitiu descansar a vista e, pouco depois, acordava com o barulho de pancadas nas grades. O agente Hwang Mansoo olhava-a, com cara de quem estava cansado de a ver ali. Também não era a primeira vez. Para além de cansaço, o seu olhar também transmitia uma frase: "vá, sai lá", tudo isso combinado com o som da abertura do trinco da porta de metal. Soren afastou os joelhos do peito, pousando os pés no chão para se levantar e passar pelo homem de meia-idade, não esperando por ele enquanto fazia o trajecto de volta à porta de entrada da esquadra, mas sabendo perfeitamente que o polícia ia no seu encalço. Só parou quando chegou ao limiar da entrada, observando primeiro a chuva torrencial lá fora e depois virando-se para Hwang Mansoo, à espera da sua palavra para finalmente sair em liberdade como em tantas outras vezes. Daquela vez, o homem demorara muito mais tempo a descolar os lábios para dizer alguma coisa, fitando Soren demoradamente. Aquilo que lhe disse estava completamente fora do que aquilo que a rapariga pensaria ouvir:

– Lamento, miúda... – Soren franziu levemente o sobrolho, olhando o agente com toda a estranheza do mundo. Mansoo, por sua vez, olhou em frente, observando a chuva a cair e remetendo-se ao silêncio durante alguns minutos. Só o barulho da chuva forte permanecia e, com ele, o apitar dos rádios e o burburinho de conversas humanas, mas bem ao fundo. Hwang Mansoo era o único homem naquele turno a estar a vigiar a porta da esquadra naquele dia – Eu sei que parece que as pessoas são egoístas e injustas, mas é assim que a lei funciona. – Tornou a mirá-la devagar, os seus olhos espremendo-se levemente, mostrando as suas rugas, provenientes da idade e, sobretudo, do cansaço, enquanto forçava um sorriso sem forças e um tanto ou quanto sem jeito – Sei que andas a passar por uma fase difícil. E não, não andei a espiolhar. Sei que não gostarias de que fizesse isso. Mas não é difícil de adivinhar.

Soren removeu a sua atenção da expressão de Hwang Mansoo, observando os carros e as pessoas a passar na rua. Sentiu o seu olhar embaçar enquanto fazia um esforço para se arrastar dali para fora, pelo menos em pensamento. Queria que aquele agente acabasse o seu monólogo o quanto antes e, se não fosse tão rápido quando desejava que fosse, pedia a si mesma que, ao menos, se conseguisse abstrair assim que possível. Esperava que a sua mente fosse ágil daquela vez, que desligasse o botão da compreensão do discurso oral. Precisava de se refugiar daquelas palavras porque, por mais que não quisesse pensar nelas, quando as cogitava, ficava automaticamente entre a espada e a parede. Um nó na garganta surgia logo a seguir e a vontade de fugir de tudo – inclusive dela mesma – aparecia de rompante, como quem liga um interruptor e acende a luz. Era apenas uma questão de segundos. Milissegundos, até. Estava quase a conseguir meter-se mentalmente num foguetão para Marte quando as últimas palavras que ouvira foram como uma bola de canhão a furar-lhe o cenário:

És feliz, Soren?

A sua cabeça virou-se imediatamente para o polícia ao seu lado, fazendo que os fios vermelho-vivo da sua franja, já meio longa, lhe espicaçassem os olhos. Talvez tenha sido por isso que estes tenham ameaçado encher-se de água, porque choro não seria de certeza. Observou o olhar de Hwang Mansoo, que a observava de uma forma inquietante, constante, quase perturbadora. As entranhas de Soren deram uma volta e ela esteve tentada a dar um passo para trás, mas não o fez devido ao seu orgulho. Apenas brindou o agente com um olhar indiferente, mas a verdade é que estava a ser difícil manter aquela posição. Sentia que estava a ser alvo de pena, justamente por parte daquele agente. Hwang Mansoo tinha passado os últimos quatro anos a colocar Soren dentro e fora da cela por furtos de comida ou de tabaco. Sempre lhe dirigira um olhar duro, mas não totalmente reprovador. Talvez aquela fosse a figura mais próxima que tinha a de... um pai. Sem dar por isso, tinha-se afeiçoado. Só percebeu no momento em que o homem lhe dirigiu aquele olhar, porque sentiu que alguma luz – pelos vistos, ainda havia alguma – se tinha apagado algures dentro de si e ouviu o seu coração rachar um pouco mais. Afinal, são as pessoas que mais amamos que nos dão as maiores desilusões. O olhar de Soren ficou ainda mais baço.

Memento [HIATUS]Onde histórias criam vida. Descubra agora