O céu estava em tons de púrpura e uma camada grossa de humidade ainda rondava o ar quando Soren abriu a porta de entrada da moradia e se foi sentar ao alpendre da casa, nos degraus em frente à entrada, tentando concentrar-se no chilrear dos pássaros, que anunciavam a alvorada. O ar frio era mais fino do que a rapariga pensava, já que, mesmo que tivesse trazido uma sweatshirt mais quente e um casaco de ganga por cima da peça, assim como umas calças de pijama polares, continua a sentir os pelos do corpo eriçarem-se. Mas não era só por causa disso que Soren tremia debaixo da roupa.
O coração dela estava aos saltos desde que chegara a altura de se deitar. Quando se tapou e tentou dormir, sentia-se extremamente acordada e só conseguia ouvir o bater do seu coração nos ouvidos, revelando o seu nervosismo e, ao mesmo tempo, potenciando-o ainda mais. Soren não era ansiosa. Normalmente encarava os problemas de frente e, mesmo que se esfolasse ao resolvê-los, não fugia e não ficava a remoer quando as coisas corriam mal. Mas, na noite anterior, deitar-se sóbria, sabendo que estava a começar um novo rumo sem Hwang Mansoo, sem rostos familiares, e pior: não sabia o que tinha acontecido enquanto estivera a dormir por causa da bebida. Não se lembrava de absolutamente nada, nem mesmo quando tinha ficado debaixo do chuveiro a pensar durante quarenta minutos. O facto de ter gritado continuava a assombrar-lhe a consciência e a paranoia corria-lhe no sangue. Soren sempre pensara que era única. Sempre se sentira única, mas nunca tinha pensado na possibilidade de haver mais alguém por aí com as mesmas capacidades que ela. Afinal, tudo no mundo era estandardizado.
Sentiu a garganta secar de um momento para o outro e a náusea a trepar-lhe pelo esófago. Os suores frios começaram a espicaçar-lhe a pele da testa e das têmporas, exigindo sair. O bater do seu coração era tão forte que conseguia sentir as carótidas a moverem-se mesmo debaixo do seu maxilar inferior e as palpitações estavam a deixá-la surda para os pássaros e todo o ambiente matinal. Surda e louca. Tinha tentado fugir daquele ruído interior e da sua mente inquieta a madrugada inteira e tinha desistido da cama justamente para vir para ali e se abstrair de tudo, mas, para onde quer que fosse, lá estava ele: o pânico. E o pior de tudo é que Soren não conseguia ter controlo sobre nada do que lhe estava a acontecer. Não conseguiu encontrar o botão de abstracção que tantas vezes utilizara para fugir da dor. Mas esquecia-se, naquele momento, que ela sempre utilizara aquele botão para fugir da dor que lhe era infligida de fora, não de dentro. Podia não lidar com as pessoas, mas tinha de lidar com ela mesma no final do dia. Normalmente conseguia fugir disso quando fechava os olhos, se deixava adormecer e saía, mas nem isso conseguia fazer mais porque tinha o medo à sua espera do outro lado. Medo de ser apanhada.
As lágrimas brotaram-lhe na vista. A rapariga só tremia. Não queria aquilo para ela. Nunca se tinha sentido tão desamparada e sem controlo das coisas. Só queria poder gritar por ajuda, mas quem é que correria com os demónios dela dali para fora, quando Soren estava sozinha? Vivia sozinha. Existia sozinha. Já não havia um Hwang Mansoo ali para lhe dar palmadinhas nas costas e dizer-lhe que o amanhã é sempre melhor que o hoje. A resposta era: ela mesma. Sempre fora ela a enfrentar os problemas, sempre fora ela a esfolar-se, mas a levantar-se. O pânico podia ser teimoso, mas já dizia o ditado: para um teimoso, teimoso e meio.
Foi o ápice da loucura. Se não tomava as rédeas de si mesma a bem, seria a mal. Custasse o que custasse. Cerrou os punhos com alguma dificuldade, pois tremiam e faltava-lhe a força nas mãos por causa da vontade de vomitar, e começou a bater na cabeça violentamente. Por momentos ainda se sentiu sã, mas depois já estava fora de si. Os soluços já não eram travados, os grunhidos de dor e raiva muito menos. Soren já não media a força com que se aleijava e estava em piloto automático. A certa altura, os murros já não chegavam, então levantou-se e atravessou o quintal aos ziguezagues até à horta da senhora, espezinhando tomates e outros legumes enquanto estendia as mãos para o ancinho, segurando-se ao cabo do utensílio para o arremessar vezes sem conta à testa até começar a sentir o sabor metálico do sangue na boca, proveniente de uma ferida que havia aberto entre as sobrancelhas de tanto golpe que sofrera. O vómito ameaçou vir em força quando Soren caiu em si e, definitivamente, não se aceitou naquele estado. Mais uma espiral de pânico. Largou o ancinho e levou as mãos aos olhos, tapando-os com firmeza enquanto os cerrava com força e respirava descompassadamente entre soluços, com a cara banhada num misto de sangue, suor e lágrimas. Nunca tinha conhecido quem a tivesse dado à luz, mas começou a chamar pela mãe entre murmúrios, desesperada. Começava a ouvir o seu coração bater ao fundo do túnel e sentiu a cabeça andar levemente à roda. Por entre todo aquele ruído existencial que era, pôde, também, ouvir uma voz masculina. Foi, sensivelmente, nessa altura que Soren desistiu de tentar ficar de pé por si mesma. Foi, também, na altura em que se rendeu à gravidade que sentiu o seu corpo a ser apanhado no ar e a ser seguro firmemente. Uns braços quentes e firmes, mas que não a apertavam nem sufocavam.
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Memento [HIATUS]
Action"Lembrança, aviso, anotação" Hanbin saiu de Moojin, deixando a sua infância para trás, assim como o seu melhor amigo, apenas para, oito anos depois, retornar e descobrir que algo de errado se passara com Jiwon. Algo muito mais grave do que aparenta...