Capítulo 3

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Quando eu morri, eu caí.
Mal sabia quem eu era, quem eu costumava ser.
Quem eu era? Um garoto qualquer, vocês podiam me reconhecer na rua, eu era aquele que sempre andava por aí com fones de ouvido e all star sem rumo.
Eu era um cara ausente e distraído. Vivia no meu 'mundinho' que não compartilhava com ninguém.
Eu tinha uma família, eles também me tinham. Para eles, não importava quão ausente eu fosse, sempre estava lá.
Meu lugar na mesa denunciava minha existência. Por mais patético que fosse, sempre estava lá.
E mesmo agora depois de morto, mesmo depois de ter entrado de cabeça no meu mundo igual aquele que criei, ainda existo.
Existo nos pensamentos de quem deixei para trás, nos corações que sempre estiveram ali, na vida de quem me viu crescer.
- Apenas meu corpo se foi, eu continuo aqui Mãe - Falo pra mulher deitada na minha cama, afago seus cabelos e ela passa a mão por cima da minha, mesmo não sentindo nada, consigo sentir esse choque, e Deus, como eu sinto falta disso.
Eu morava bem aqui, entre dois prédios sem pintura, fedendo a bebida e culpa, mas eu morava bem aqui.
Rua sete, número noventa e seis, até a três meses atrás.
Ainda me lembro de como era voltar pra casa. O mesmo caminho, o mesmo processo. Colocava  o skate encostado no batente da porta, fechava a porta atrás de mim, pedia bênção de metade da sala, apertava as mãos da outra metade, sentava e enchia meu prato e catava as ervilhas que a minha mãe insistia em colocar, escovava os dentes, tomava um banho, ia para o quarto, passava duas fases de Zelda, criava um avatar no outro, via um episódio de naruto, respondia poucas mensagens do Facebook - enviava um oi para Maribel, esperava meia hora por sua resposta, ela nunca respondia, deitava na cama, implorava pro sono vim, dormia duas horas depois, acordava as 10h, uma tigela de aveia com canela já me esperava, ia para a escola, voltava.
Sempre foi assim, meu destino era ser repetitivo.
No entanto eu queria mudar, eu tinha que mudar, e essa mudança me matou, simples.
Eu troquei de rua, troquei de destino.
O destino pode ser bem vingativo quando quer, eu sei lá, só sei que morri.
E agora não tem como repetir tudo aquilo.
Mas tanto faz, aquela era uma vida de descidas irregulares e quedas triunfantes. Eu a vivia, mas não por opção.
É, Rine sempre disse que meu humor era bastante flexível. Talvez eu ainda devesse estar triste, como estava a ...qualquer que tenha sido o tempo entre minha tristeza e meu colapso de sarcasmo.
Mas uma alma peregrina não deveria ter sentimentos - e eu tentava me convencer disso.

[X]

Rine estava irritada com o Henri chorando, era péssima com crianças.
- Essa porra não para de chorar não? Que caralho! - reviro os olhos, ele só tinha 8 meses.
Pego ele no colo e ele começa a brincar com meu cabelo e Rine nos encara.
- Como? - ela tenta entender e ela parece tão bonita enquanto me encara por debaixo dos óculos, não exito em sorrir.
- Crianças e animais são seres espirituais e mais sensitivos - eu digo e  ela afirma  com a cabeça.
- E desde quando você virou um ser tão espiritualizado?- ela diz enquanto me encara com um sarcasmo carregado e eu começo a rir, a gargalhar na verdade.
- Desde quando eu morri abobrinha - Digo e ela me mostra o dedo do meio. No sétimo ano, Rine pintou o cabelo de laranja, aí começou os apelidos; abobrinha, cenoura e por aí vai.
Henrichora novamente, Rine gostava dele, no fundo ela gostava, só odiava barulho.
Rine me lembrava minha avó, o amor por plantas e croché, odiar barulho e que mexam na suas coisas, era a minha avó algumas décadas mais nova.
- Me dá ele - ela desce, provavelmente vai dar alguma coisa pra ele comer, apareço do lado dela, da última vez ela deu bolo pra ele, aí já dá pra imaginar o que aconteceu.
- Eu faço - Rine coloca ele na cadeirinha e me olha- Queria tanto poder tocar você e eu...
Sei exatamente o que ela vai falar e digo baixinho no ouvido dela:
-Também senti a sua, você é a pessoa mais importante pra mim, sempre vai ser - Digo e era verdade, deveria ser minha família, mas era ela. Se eu perdesse eles, eu tinha ela pra me ajudar a sustentar a barra. Agora se ela morresse, eu não queria que nenhum deles segurassem a barra pra mim. Rine não tinha ninguém e isso me deixava mal  mas ao mesmo tempo eu ficava feliz de saber que ela ainda me tinha.
Está frio, ela logo coloca ele pra dormir e vou até ela, está chovendo e ela está sentada na cadeira de balanço que tem na frente da sua casa. Ela usa um short de dormir muito fino, o que faz com que eu consiga ver sua calcinha azul daqui e não posso dizer que não gosto da visão.
- Pode me deixar sozinha? - ela pede e eu me sento ao lado dela - obrigada - ela diz assim que eu tento segurar sua mão.
- No que está pensando?
- Ainda tô tentando assimilar tudo, você está aqui e por mais que eu adore isso, é aterrorizante. Às vezes eu penso que tô ficando maluca.
- Você sempre foi.
- É sério, eu não tô pensando e eu surto quando tento.
- Continua assim.
Ela levanta pra pegar mais chá e eu a observo.
Aí eu me culpo por morrer, não deveria ter sido assim, eu acho que eu e Rine merecíamos uma chance, nós realmente merecíamos, mas é como eu disse.
O destino pode ser vingativo quando quer, e pra provar isso, eu morri e isso acabou com a gente, com toda a fudida chance que a gente poderia ter.

[X]
26/11/2018

The dark blueOnde histórias criam vida. Descubra agora