Mau Presságio

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Faltavam três dias para o Halloween. E para o aniversário de Sabrina. Os quatro amigos tentavam convencer a loira a comemorar com eles de todas as formas. Não era muito fácil. Afinal o compromisso dela com as tias realmente parecia inadiável.

Era quarta, e não haveria aula naquele dia. Então todos estavam em casa, resolvendo problemas e adiantando tarefas.

Raphaelle acordou bem cedo, e ficou alguns minutos sob o chuveiro quente. Havia tido um sonho estranho, mas não se lembrava com o que.

Colocou um vestido de algodão branco, com um decote v nas costas e um decote coração nos seios. Decidiu que ficaria descalça, afinal iria apenas limpar a casa. Ambrosie estava ocupado aquele dia. Quatro corpos para embalsamar. Resultado de um massacre que a maioria dizia ser inexplicável.

-Você saberia, não é?-Murmurou para o nada. Sabia que ninguém a ouviria. Nunca ouviram.-Sempre foi ótimo em solucionar meus enigmas. Em desvendar mistérios e descobrir mentiras.

Deu de ombros e começou a limpar tudo. A casa estava um pouco abafada com as janelas fechadas, então as abriu assim que o vento parou de jogar água para todos os lados.

Acabou se sentando um pouco no sofá. Era ridículo que se sentisse tão cansada tendo feito tão pouco. Todos sempre disseram que seu coração era fraco demais.

-Raphaelle?

Respirou pesado. Já era a quinta vez aquele vez que isso acontecia. Pegou a cristal branco que ficava sobre a lareira e abriu a porta de casa.

-Você não me deixa escolha, Asmodeus.-Os olhos azul se fecharam e ela sentiu a pedra em sua mão aquecer.-In aeternum custodiam me ab hoc peto, scilicet angustia crucians, et anima mea memorias terit. aperite portas inferi nunquam eam accipere voluisset.

O grito de um demônio forçado a voltar para a escuridão era sempre agourento. E os humanos que achavam o grasnar de um corvo um presságio de horror... Eram criaturas engraçadas.

Uma coruja rasga mortalha pousou no balaustre, e seu piado a fez abrir os olhos, sorrindo para o belíssimo animal.

-Olá, Jacar.

-Olá, Raphaelle.-A coruja saltou para seu colo, a envolvendo com as imensas asas.-Estava com saudade.

-Eu também estava, querida. Vamos, lá dentro está quentinho e eu tenho pedacinhos de carne pra você.

Fechou a porta e deixou a coruja sobre o balcão da cozinha, onde o ave se esparramou em um pano de prato que até esta o estava sobre o fogão. O tecido estava bem quente porque o forno estava ligado.

-Você parece mais feliz, Raphaelle. Conheceu amigos novos?

-Sim, Jacar. Dois deles você vai poder conhecer também. E a Sabrina tem um familiar muito querido. Acredita que ela preferiu convidar um gnomo para ser familiar dela?

-As bruxas perderam esse costume há muito tempo.

-Talvez a raça das bruxas tenha ficado pura demais, Jacar. Começar a misturar de novo vai melhorar as coisas.

Ela terminou de servir o prato e sentou no banquinho alto do balcão, com uma xícara de chá, e um bebedouro pequeno para a ave poder se hidratar enquanto comia a carne.

-Raphaelle... Por que veio pra Greendale?

-Está ficando melhor em se transmutar, Miguel.-A castanha parou de acariciar as penas da ave.-Eu espero que não tenha feito mal a Jacar, do contrário vai me pagar bem caro por isso. E diga ao seu irmão para cuidar da própria vida.

-Não! Raphaelle, eu não vim por causa do Gabriel! Eu queria te ver.

-Então que tivesse vindo na sua forma original. Trapaceiros não são bem vindos nessa casa. Vá embora, de livre e espontânea vontade. Faça um favor a si mesmo.

A criatura ainda tentou argumentar, mas ao ver o cristal roxo que a moça pegou da lareira, voou desesperadamente para fora.

Raphaelle colocou a pedra de volta no lugar. Sua mão queimava, como se algo a corroesse. Se deitou no sofá e permitiu que suas lágrimas e soluço saíssem como quisessem, em um choro pesado e carregado de mágoa.

•~🦇~•

-Sabrina... A Raphaelle não virá?

Ambrosie não se conformava em ver todos os outros mortais reunidos ali. E sua doce Raphaelle não dera notícias. Era quase ultrajante.

Depois que haviam se entediado de ficar em casa, os amigos de Sabrina haviam se encontrado na mansão Spellman. Quase todos. Raphaelle sequer atendeu aos telefonemas ou respondeu as mensagens.

-Eu não sei Ambrosie. Ainda mais com essa chuva que não para. Ela não me respondeu, nem visualizou as mensagens que eu mandei. E logo esse vendaval vai prejudicar a distribuição de energia na cidade.

-Meu pai dizia que quando chove assim é porque um anjo está chorando.

Rosalind ganhou a atenção de todos os outros, incluindo Zelda e Hilda, ao dizer isso. Não era comum que a men ijna tocasse em assuntos de religião, especialmente no que dizia respeito a Deus ou anjos. E ficou ainda mais reclusa quando soube da cegueira que a aconteceria.

-Acha mesmo que os anjos choram, Rosalind?

A pergunta veio de Susie, e fez a amiga ajeitar a postura no sofá,arqueado a sobrancelha.

-Vocês nunca ouviram essa história? É uma das versões do que aconteceu quando Lucifer foi banido do paraíso.-Zelda teve de conter a vontade de bufar e revirar os olhos.-É bem antiga e apenas as igrejas de Greendale falam sobre ela.

-E como é essa história, querida?

Hilda sempre seria uma eterna e incorrigível curiosa, e Rosalind pareceu desconfortável ao falar naquilo. Mas mesmo assim ela se acomodou, e pareceu disposta a ensinar algo novo aos amigos, como sempre fizera.

-Os antigos contam que, quando tudo começou, aquele que chamamos de Deus tinha, não dois filhos favoritos, tinha cinco. Seus mais belos e poderosos seres celestiais. Seus arcanjos...

•~🦇~•

Madame Satã andava em círculos em sua sala. Seu corvo havia trazido notícias. Péssimas notícias.

-Então eu tinha razão. Aquela menina não é uma simples mortal.-Ela olhou para seu familiar.-Mas que amaldiçoada criatura ela é? Preciso averiguar. Ela pode destruir todo o plano do Senhor das Trevas.

Ninguém queria um ser capaz de exorcizar Asmodeus com tranquilidade rondando pro Greendale. Talvez ela devesse contar a Blackwood sobre a garota. Odiava ter de pedir ajuda, principalmente a homens... Mas aquela era uma situação muito, muito, delicada. E perigosamente sem precedentes.

•~🦇~•

Nas paredes das minas os trovões soavam ainda mais tenebrosos.

Eram como gritos horríveis de pura agonia. Aqueles que vinham da alma, como se unhas a dilacerassem.

O ser dentro da caverna derramava finas lágrimas de tinta, encolhido em um canto. Ele odiava tempestades.

Era a mesma dor, o mesmo grito. Se repetindo durante horas a fio. Aquela era uma de suas penitências. A mais cruel e injusta de todas.

Você Já Viu Asas?Onde histórias criam vida. Descubra agora