I. Irlanda

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Não havia sequer um lugar da cidade portuária que não fosse preenchido pelo som de motores e vozes de homens e mulheres trabalhando. Veículos soltavam fumaça pelas ruas e os sons das engrenagens dentro das lojas e fábricas confundiam meus sentidos mesmo durante o dia conforme nos aproximávamos da lua cheia. 

As ruas da cidade eram asfaltadas e sequer era possível escutar o som dos passos de alguém próximo em um lugar tão movimentado como aquele. O ferreiro nem levantou a cabeça quando passei por sua forja do lado de fora da loja que tinha construído no centro da cidade, embora meus olhos tenham se focado imediatamente no braço de metal que subia até seus ombros largos.  Não perguntei nada, no entanto, apenas continuei descendo a rua, atenta a tudo que acontecia à minha volta.

Optando por cortar caminho, desci um longo lance de escadas entre duas casas até a rua paralela construída abaixo do nível do mar. O sol estava forte àquela hora, e eu precisava apertar os olhos para olhar mais longe, xingando-me por não ter arranjado óculos escuros mais cedo. Sinto a aproximação de alguém assim que desço os últimos degraus, e imediatamente tiro a lança das minhas costas, apontando-a na direção da garganta da garota baixinha que nem hesitou em largar a faca pelo susto. O som de um grito de um menino às minhas costas me faz virar imediatamente, e nem me esforço muito para imobiliza-lo com as suas mãos atrás do corpo.

— Péssimo timing.- Alerto Morgan, soltando-o do meu aperto e permitindo que se junte a uma Liev assustada.- Se querem sobreviver a uma luta de verdade, devem aprender a ser mais sorrateiros. Vocês são jovens, devem prezar o elemento surpresa. É a única chance que tem, já que a maioria dos adultos não vai esperar que dois garotos de 15 anos vão saber lutar o que quer que seja.

— Isso não é justo!- Liev bate os pés no chão, indignada.- Você é uma Caçadora da Meia-Noite. Nunca vamos vencer você.

— Eu era uma Caçadora.- Lembro-a.- As coisas mudaram. Eu estou sendo até gentil com vocês, há pessoas piores que nunca seriam tão bonzinhos de apenas imobiliza-los. 

— Como quer que eu aprenda alguma coisa, se só o que faz é nos vencer de novo e de novo?

Um brilho dourado me faz prestar atenção nas árvores daquela rua. Sabendo o que encontraria, não demoro para notar um pássaro de metal entre as folhas amareladas do fim do outono em uma árvore não mais do que 3 metros longe de nós. Puxo os dois para longe daquela rua sob protestos antes que a ave vigia vire seus olhos vermelhos para nós. Depois de tudo que eu fiz na Inglaterra, o prêmio pela minha cabeça devia estar alto, e eu não iria arriscar minha vida com uma câmera disfarçada de pássaro. Maldita tecnologia britânica! Um dia ela tinha sido útil, agora era só um meio de acabar com a minha vida mais cedo.

— Vocês tem que entender que isso é questão de vida ou morte.- Aviso os dois quando estamos longe o bastante de qualquer árvore, graças a proteção e sombra de uma ponte baixa sob a qual soltei os pulsos dos dois.- Parem de choramingar como se eu fosse uma pessoa ruim. Escolheram nos acompanhar, agora vão ter que seguir as minhas regras. Caso contrário, boto vocês dois em um barco e mando de volta para Hawkshead. E aí, como vai ser? 

— Eu não vou voltar para casa!- Liev cruzou os braços e continuou batucando um dos pés, fazendo a longa saia que vestia farfalhar com o movimento de suas pernas.- E Morgan não tem para onde ir.

— Então acho bom parar de reclamar.- Repito.- Ou mando os dois pro primeiro orfanato que eu encontrar.

— Você é uma péssima pessoa, Saphira.- Morgan retruca.

Eu sabia bem a reputação dos orfanatos deste século, mas que escolha eu tinha? Se quisesse mantê-los a salvo, precisava me manter firme, e tentar fazer os dois entenderem que precisavam seguir ordens, assim como eu também fui obrigada a aprender para continuar viva na Caçada da Meia-Noite.

A Rebelião dos LobosOnde histórias criam vida. Descubra agora