Quando abri os olhos a primeira coisa que vi foram as grades. Estava com os pulsos e pernas amarrados, deitada em um chão gelado. Me virei com dificuldade, tentando levantar, então senti os nós apertando minhas pernas e impedindo o movimento. O máximo que consegui foi ficar de joelhos. A jaula era retangular e aberta em todos os lados, por isso eu conseguia ver o que acontecia lá fora. Ainda estava no vale, nas profundezas da caverna, em algum lugar longe do lago. Muitos Hellwegs passavam por ali carregando grandes caixas, suprimentos para a guerra, com certeza. Andavam em fila indiana, guiados por oficiais que apontavam onde deveriam descarregar as caixas.
Não dava para ver de onde eles estavam vindo, mas com certeza era do lago, através do portal. Ignis seria massacrada, e tudo por culpa de Nestor e Ricardo. Eu ainda estava assustada, mas, comecei a sentir uma raiva que nunca havia experimentado na vida. Não dava para entender o que motivou os mais nobres da nossa pequena sociedade a se aliarem ao inimigo. Lembrei de Belina e meu coração gelou, será que eu seria a próxima? Provavelmente. Então pensei em Prateado, mas logo desisti pois ele não teria nenhuma chance contra aquele exército. Eu estava acabada.
Então, subitamente, ouvi um estrondo forte, e que foi imediatamente seguido por um pequeno tremor; outro estrondo, outro tremor, e eles foram ficando cada vez mais altos e cadenciados. Eram pisadas! Algo bem grande estava se movendo para perto da jaula. Com dificuldade, me virei para o outro lado e me arrastei para das grades. Daquele lado também haviam dezenas de Hellwegs, mas esses transportavam o que parecia ser comida: grandes peças de carnes, cestas de pães, toneis. Foi então que eu vi, logo atrás dos transportadores, uma imensa criatura. Senti meus batimentos dispararem.
A fera era gigantesca, bípede, devia ter uns 4 metros de altura. O corpo era largo, forte, coberto de pelos marrons e amarelados; suas mãos enormes possuíam garras brancas no lugar dos dedos, e elas quase tocavam o chão; presas imensas projetavam-se da boca, e a cabeça lembrava a de um tigre, porém, possuía dois grandes cornos pontiagudos, como um búfalo.
E ela andava vagarosamente, como se estivesse dopada. Quando passou ao lado da minha jaula, reparei em seus olhos, e eles eram totalmente brancos. Um Hellweg a puxava usando um longo bastão preso a uma coleira em seu pescoço, e esse Hellweg era diferente dos outros, usava uma armadura branca de aparência leve e no rosto uma máscara que imitava o rosto da criatura, contudo, o mais intrigante é que era uma mulher. Não havia nenhum registro de mulheres nas fileiras da Irmandade. Pelo que sabíamos, elas formavam o governo e cuidavam da administração.
A Hellweg me olhou, parecia saber o que eu estava pensando. Então virei o rosto, colocando minha bochecha no chão frio de metal. Minha cabeça a mil, meu corpo dolorido e cheio de fome. Fechei os olhos e tentei limpar a mente, eu precisava manter os pensamentos ruins afastados.
***
- Isabel?
A voz de Ricardo me tirou do sono. Ele estava diante da jaula com Nestor e o general Hellweg ao lado. Trazia uma bandeja nas mãos.
- Você precisa comer, Isabel. Está muito fraca - disse Nestor.
Encarei Ricardo, bufando. Minha vontade era matá-lo, cortar sua cabeça fora. Fiquei de joelhos.
- Você sabia... você sabia o que iria acontecer e não fez nada para impedir, deixou Belina morrer! Por que fez isso? Por que!!!
- Eu sinto muito por ela, Isa, acredite. Belina não deveria morrer, nós só precisávamos de alguns litros de sangue, mas você sabe como ela era...
- Ela era sua amiga, seu merda!
Ricardo estancou, então Nestor voltou a falar:
- Não poderíamos deixa-la voltar para Ignis; oferecemos a ela uma escolha, só que ela preferiu a opção errada. Infelizmente não pude fazer nada. Foi de fato uma perda muito triste.
Lembrei do corpo de Belina seco como uma folha morta. O sangue ferveu em minhas veias.
- Seus desgraçados! Traidores! Traidores!
- Isabel, você não entende - gritou Ricardo. - Todos esses anos nós estivemos do lado errado, e agora...
Nestor colocou a mão no ombro do filho, fazendo-o parar de falar.
- Calma, calma! Tudo a seu tempo. Isabel está fraca, cansada e abalada. Ela precisa se recuperar, se alimentar. Você a conhece, Ricardo, não tem culpa de ter nascido naquela família e herdado a fraqueza deles. Quando Isabel estiver melhor, então teremos essa conversa.
Nunca gostei de Nestor. Ele inferiorizava as pessoas, tratava a todos como incapazes, gabando-se de seus conhecimentos. E, embora negasse, no fundo odiava minha família. Nunca concordou que fizéssemos parte do Concelho de Ignis e sempre que podia armava maquinações para nos prejudicar. Embora no dia-a-dia ele nos tolerasse, meu pai sempre disse para ficarmos espertos quando tratássemos com Campanaros. Mas Ricardo parecia ser diferente nesse aspecto, em várias ocasiões ele confrontou o pai e ficou do nosso lado. Mas era tudo encenação, naquela momento eu pude ver que Ricardo era tão ruim quanto o pai.
Nestor largou a bandeja ao lado da jaula. O general Hellweg apenas olhava para mim; e eu podia ver seus olhos através das aberturas no elmo de dragão. Senti o quanto ele me odiava, aquele homem queria me ver morta.
- Coma, Isabel. Mais tarde vamos soltá-la, então te explicaremos tudo. General Yvar, por favor, pode soltar os braços dela?
O Hellweg hesitou um pouco, mas obedeceu. Ele ergueu a mão e a porta da jaula se abriu. Sacou uma faca e entrou, instintivamente me afastei, meu coração explodindo no peito.
- Vamos, erga os braços, não tenha medo - disse Nestor.
Relutantemente obedeci. Estiquei os braços expondo minhas mãos amarradas e, com um golpe muito rápido, o general partiu a corda. Então ele saiu da jaula e novamente ergueu uma mão, a porta se fechou em resposta.
- Até breve, querida. Nos veremos mais tarde.
"Querida? Filho da ...", pensei.
Os três me deram as costas e foram na direção dos Hellwegs. Ricardo ainda olhou para mim com uma expressão de pena, em resposta, virei o rosto par ao outro lado. Miseráveis, desgraçados traidores. Nada justificava o que eles fizeram, nada justificava a morte de uma inocente e a traição. Nestor de certo acabaria com minha família e aprisionaria os outros agraciados, matando quem se ousasse se opor. Eu tinha que escapar, dar um jeito de avisar a Legião, mas como? Naquele momento eu estava fraca, faminta e aprisionada.
Olhei para a bandeja; havia um prato com pão e carne, uma tigela de sopa e um copo com um líquido verde. Minha barriga roncou. Pensei que poderia haver algo ruim naquela comida, mas a fome falou mais forte. Não consegui me controlar e peguei o pão, mordendo-o vontade.
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Sangue de Bruxo
FantasyNum futuro indefinido, após um evento misterioso que transformou o mundo, os seres humanos enlouquecidos e assustados condenaram a humanidade através de uma brutal guerra nuclear, mas, incrivelmente, a magia retornou à Terra e salvou o que restou de...