Parte 2: Somos Um.

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A noite já começava a impor seu domínio afastando os últimos raios do sol, vencidos pelas nuvens do horizonte. A escuridão alastrava-se rapidamente, acordando suas criaturas que produziam uma sinfonia repleta de uivos, zumbidos, sibilos e tantos outros maravilhosos sons.

Estávamos seguindo pela estrada do Vale das Trevas, voltando às pressas das ruínas e ficando mais e mais distantes de Ignis. Prateado corria à minha frente, e eu o seguia aos trancos, quase desmoronando; o pescoço ainda latejando e uma fome que estava me deixando tonta. Acho que por isso não me atentei ao fato de pela primeira vez na vida estar fora da cidade ao cair da noite. 

Comecei a implorar para que Ricardo, onde quer que ele estivesse escondido, conseguisse entrar na minha mente e me guiar ao seu esconderijo. Mas será que ele sabia que o próprio pai estava envolvido naquela desgraça toda? Deuses, comecei a me compadecer por Ricardo, certamente seria um choque e tanto para ele.

Andamos muito, então fiquei completamente sem fôlego. Parei para respirar e me apoiei nas pernas. Mas Prateado continuou, ele parecia estar cada vez mais forte. A medida em que ele se afastava, o medo crescia dentro de mim, e eu não queria em hipótese alguma ficar sozinha naquele lugar. Reunindo forças do fundo da alma gritei:

- Prateado, me espere, por favor!

Surpreendentemente ele atendeu, parou e ficou em posição de alerta. Despenquei no chão, arfando. Então olhei para trás e vi os pilares de luz de Ignis, colunas verdes e brilhantes  projetadas ao céu e dançando em câmera lenta. Eram produzidas por grandes faróis que ficavam logo atrás das muralhas. O fogo verde além de servir de guia para os viajantes noturnos, também protegia a cidade, criando uma barreira mística que afugentava as criaturas hostis e podia resistir aos feitiços de ataque da Irmandade. Engraçado, daquela distância tudo parecia muito tranquilo, como se nada tivesse acontecido. Será que o povo sabia da traição do Nestor? Será que ele estava escondendo os Hellwegs? Ou eles já haviam tomado Ignis? E como meus pais estavam?  A angústia voltou, e com ela veio a lembrança da morte de Belina. 

Me sentei apoiando a cabeça nos joelhos, tentei limpar a mente, encontrar forças para continuar, mas a ansiedade não deixava e as lágrimas começaram sair.

Então eu ouvi um uivo medonho, sinistro, que gelou minha alma e fez com que dezenas de pequenas criaturas que estavam por perto desaparecem. Fiquei alerta, tentei me concentrar para descobrir o que se aproximava, mas a Água da Vida no meu sangue já estava escassa, eu precisaria me alimentar e dormir várias horas para que ela aumentasse um pouco.

Som de galhos se quebrando à minha direita, de repente a temperatura despencou; eu estava apavorada;  busquei em minha mente qual animal, quais criaturas poderiam provocar um efeito daqueles. Para mais desespero logo encontrei a resposta: um Galfferion. Lembrei dos livros, Galfferions portavam a essência do mal, eram criaturas assustadoras e perversas que surgiram no pós-despertar. Possuíam o corpo peludo de uma aranha gigante, três cabeças que lembravam faces de lobos deformadas, dentes retorcidos projetados para fora da boca, mas apenas uma das das cabeças conseguia enxergar, além disso, tinham pequenas asas que os ajudavam a planar por alguns metros após saltarem.

Prateado não era páreo para um Galfferion, nossa única opção era fugir.  Mas algo estava errado, aquelaa criatura aparecer ali era impossível! Todos os Galfferions que habitavam o território de Ignis haviam sido caçados e destruídos, inclusive, a Legião tinha leis bem claras que autorizavam o extermínio daquelas bestas. Não tenho palavras para descrever o pavor que senti naquele momento, mas por sorte meu amigo pareceu sentir o meu medo, e veio correndo em minha direção.

Os olhos de Prateado acenderam-se como uma lanterna, passando do azul escuro para um brilho amarelo, tomei um susto ao vê-lo daquele jeito, ele me encarou e eu recuei, temerosa; em segundos a luz de seus olhos aumentou e tornou-se vermelha como o fogo. Dê súbito, tudo a minha volta ficou embaçado, exceto Prateado; algo muito estranho aconteceu: o medo desapareceu e fui impelida a correr até ele, não sei de onde tirei forças para tal. Montei em suas costas e senti uma força ancestral tomando conta do meu corpo; a noite ficou em cores vivas. 

Eu conseguia enxergar muito mais longe, ouvir sons misteriosos vindo de todos os lados, sentir a pulsação de centenas de seres que estavam ao meu redor, e consegui ver o Galfferion: ele aproximava-se sedento de sangue, estranhamente atraído pela minha presença. Dentre todas as criaturas do Vale das Sombras, aquele demônio havia escolhido justamente eu, a humana pequena, magra e fraca! Era muito azar para uma única noite.

Contudo, havia uma coragem sobrenatural brotou no meu coração, como se eu pudesse enfrentar um exército inteiro de Hellwegs, entretanto não era isso o que Prateado pretendia. Ele, assim como eu, sabia que encarar um Galfferion seria morte certa. Minha mente era a mente de Prateado, e por isso pude entender seus pensamentos, havíamos nos conectado de uma maneira que eu jamais poderia prever. Eu estava vendo com a visão dele, escutando com seus poderosos ouvidos e sentindo a natureza à minha volta como se eu fosse um lobo-dragão, pensei para nós dois: "Prateado, somos um!".

Ele se virou no exato momento em que a besta saía da floresta com suas cabeças bufando, as patas se movendo frenéticas impulsionado o corpanzil medonho em nossa direção. Começamos a correr em disparada, as batidas sincronizadas dos nossos corações eram tão fortes que ecoavam por todo o meu corpo. Prateado se lançou para fora da estrada, entrando frenético no meio da floresta e ganhando velocidade. A besta uivou de raiva lá atrás, ela ainda saltou, mas não conseguiu nos alcançar.

Não sei ao certo quanto tempo nós corremos, mas conseguimos escapar do monstro. Finalmente começamos a sentir um cansaço, e Prateado foi diminuindo as passadas. Havíamos chegado aos pés de que parecia ser uma montanha, e então nos desconectamos. Não foi legal, tomei um choque e uma sensação de desconforto permaneceu por vários minutos, e aí tudo voltou: a fome, a fadiga, a dor de cabeça e de quebra uma sede sobre-humana. Então, do nada, uma voz familiar invadiu minha mente:

-Isa! É você?

-Ric! Não acredito! Onde você está? Estive te procurando a noite inteira... Olha, tem um... tem um Galfferion a solta! - eu pensava e falava ao mesmo tempo.

-O quê? Um Galfferion? Não, chega, Isabel, isso não é possível! Mas me escuta:  você não pode ficar aí nem mais um minuto! Siga a minha voz, eu estou em uma caverna a uns vinte e poucos metros da sua posição, corre!

E foi o que eu fiz, tentando levar Prateado junto comigo, porém ele se recusou, erguendo as orelhas como se esperasse por algo. Então ouvi vários uivos ecoando na floresta, mas dessa vez não eram Galfferions,  eram lobos-dragões, era a matilha do Prateado. Ele  virou-se para mim e chegou mais perto, deu uma lambida no meu rosto e em seguida correu para a vegetação, desaparecendo nas sombras. Mas eu sabia que ele voltaria, pois um vínculo muito forte havia se formado entre nós, e mesmo a distância eu podia sentir o coração do meu amigo. Fiquei feliz como se uma chama de esperança brotasse em meu peito, então segui na direção que o Ricardo indicou.

Sangue de BruxoOnde histórias criam vida. Descubra agora