Prólogo: O Despertar.

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Sei algumas coisas sobre o Mundo Antigo, não tanto quanto os Mestres, mas o suficiente para entender como ele chegou ao fim. Era um mundo bem diferente, com florestas de concreto e ferro que se estendiam por quilômetros, onde bilhões de pessoas viviam espremidas em cubículos.

Também aprendi que, tal como hoje, a sociedade era dividida em grupos: os poucos que muito tinham e os muitos que pouco possuíam, e um mundaréu de gente que oscilava entre os dois extremos.

Os recursos naturais foram quase todos exauridos, mas, quando a situação se complicou, os líderes agiram rápido, e conseguiram salvar o pouco que restava.

Os antigos também cultuavam deuses, me lembro de pelo menos três deles: um no ocidente, outro no oriente e uma deusa onipresente, talvez a mais poderosa dos três, pois dava respostas objetivas para perguntas subjetivas, era a Deusa Ciência, e a seus seguidores eram chamados de cientistas.

Haviam máquinas por todos os lados! Máquinas nasciam de outras máquinas, máquinas construíam cidades, máquinas curavam pessoas... e máquinas matavam e destruíam. Eu admito: odeio máquinas, mas tenho que ser justa, porque do mesmo jeito que acontece hoje em dia, os autômatos não tomavam as decisões, eles simplesmente executavam as ordens de seus mestres humanos.

Humanos. Até hoje não consigo entender nossa verdadeira natureza, por que nos deixamos levar por sentimentos mesquinhos? Por que não conseguimos suprimir nosso lado sombrio? Quando eu era criança, em Ignis, um dos Mestres me contou sobre o Lobo, a fera que vive dentro de nós e que, quando o medo aflora, assume o controle e espalha violência e destruição; é algo inerente a nossa natureza, é deprimente, mas é a verdade.

E foi no último ano da Era Antiga que o Lobo assumiu o controle sobre a civilização, e cravou suas garras na alma dos homens. Mas tudo começou alguns anos antes, quando o Sol se transmutou e os céus da Terra ficaram completamente verdes, em tons saturados de esmeralda.

Foi uma comoção mundial, a humanidade inteira parou para admirar o fenômeno. Todas as guerras cessaram e muitos atribuíram o ocorrido à intervenção divina, diminuindo o poder da Deusa Ciência, mas logo ela passou a ser procurada, e seus sacerdotes estudaram o episódio durante algum tempo, mas pouco descobriram, sabiam apenas que as partículas na atmosfera haviam mudado e que um novo tipo de onda eletromagnética passou a ser expelida pelo Sol.

Nos primeiros meses do céu verde, coisas estranhas começaram a acontecer, porém, poucas pessoas deram a devida importância a elas. Eram relatos de levitações de grandes objetos, aparições de fantasmas, criaturas estranhas espreitando nas sombras das selvas de concreto, e muitos crimes misteriosos.

As plantas começaram a morrer, aos milhares, e com elas os insetos, os animais selvagens e a maioria dos ecossistemas. O lobo acordou e ele estava faminto. As cidades antes colossais e majestosas tornaram-se caóticas, a violência explodiu e as instituições ruíram. Mas os líderes do mundo agiram rápido, usando a força para restaurar a ordem, e mesmo assim a onda de violência varreu boa parte do mundo.

Então, alimentada por tanto ódio, a fera ficou mais forte, e logo se apossou do coração dos líderes. As nações sobreviventes lutaram entre si pelos parcos recursos naturais restantes. Incapazes de cooperar, usaram suas armas e travaram uma guerra que se prolongou por anos, onde ninguém tinha a superioridade. Finalmente, completamente dominados pelo Lobo maldito,  os líderes das nações mais poderosas partiram para a solução final: a guerra termonuclear. E ela foi rápida e decisiva. Pois fim aos conflitos, mas levou a humanidade para o túmulo. Nós a chamamos de Grande Ômega, e ela marca o início da Nova Era.

Poucos restaram, espalhados pelos continentes, e logo um novo demônio se ergueu das ruínas para caçá-los, um demônio invisível e letal que assombra o mundo até hoje: a radiação. Perseguindo sem piedade os sobreviventes, o espectro nascido das bombas tornou-se o ceifador do mundo, porém não pegou a todos: pessoas que contaram com a astúcia e souberam usar seus recursos acumulados em eras de prosperidade construíram abrigos dentro de montanhas e debaixo da terra, onde puderam sobreviver e preservar o que de melhor a antiga civilização produziu. Eu mesma descendo dessas pessoas.

Mas para os que viviam fora dos abrigos, talvez a morte fosse a melhor saída. Sem comida, sem água e sem proteção, eles caçavam uns aos outros enquanto fugiam da radiação, era o reino do Lobo, absoluto sobre a face da Terra.

E foi então, a exatos dois anos do Grande Ômega, que um fenômeno incrível aconteceu: a primeira grande chuva de Água da Vida. Os sobreviventes, incrédulos, presenciaram um espantoso milagre, um renascimento, o que chamamos de Despertar.

Onde as gotas caíam plantas exóticas brotavam, trazendo junto enxames de estranhos insetos. A água mística filtrou a terra, eliminando parte da radiação. O céu se abriu, afastando as tempestades e o frio. O deus Apolo tomou novamente o seu devido lugar, trazendo luz e calor. Dos esqueletos dos antigos animais novas criaturas surgiram, esplendidas e perigosas; tapetes de vegetação vermelha cobriram os desertos radioativos, e o homem aprendeu que a Água da Vida purgava o corpo, eliminando as chagas do átomo.

Um novo mundo tomou forma, e com ele, uma nova sociedade se desenvolveu, ávida para aprender e dominar a maravilhosa energia mística, todavia, como nada é perfeito, os antigos demônios do espírito humano retornaram com vigor. A ganância, a inveja, a intolerância, aqueles mesmos que ajudaram a corroer o mundo antigo.

Alianças se formaram e novos deuses foram descobertos, uma energia incomensurável e indomável se espalhou pela Terra, e a palavra bruxo tornou-se sinônimo de poder.

E como você pode imaginar, com o poder vieram as disputas, e logo o frágil equilíbrio entre as novas forças estava ameaçado. Não haviam mais máquinas para executar as ordens dos homens, mas o novo poder, a magia, se mostrou tão letal quanto as antigas máquinas de guerra.

Duas forças dominantes, formadas por duas ordens opostas, cresceram em poder e influência. As cidades tiveram que escolher de que lado ficariam, e rapidamente o novo mundo foi demarcado, separado entre as duas novas potências: no hemisfério sul a Legião de Hórus imperava, o hemisfério norte era o domínio da Irmandade de Dagda.

As duas ordens logo entraram em combate, mas felizmente chegaram a um cessar fogo, assinando um armistício.  Desde então vivemos em uma paz relativa.

Eu nasci no hemisfério sul, onde no mundo antigo havia um país chamado Brasil. Por muito tempo fui apenas mais uma menina aprisionada em uma rotina controlada, mas você sabe como é a vida, quando tudo parece previsível e estável, ela dá um jeito de sacudir as coisas, de te fazer perder o rumo. Comigo bastou apenas um momento, e de repente eu me vi no meio de uma grave crise, que me obrigou a trilhar um caminho tortuoso que me despedaçou, me fez vivenciar a cólera, o terror, a avareza, mas que também me tornou mais forte. Aprendi o significado da amizade, da união e de lutar por aquilo em que acreditamos. Essa é a história que me colocou na jornada, que moldou a mulher que eu sou hoje e que me preparou para ser uma Harpia, uma sacerdotisa guerreira.

Sangue de BruxoOnde histórias criam vida. Descubra agora