Luísa
Já imaginou receber um diagnóstico de morte? Agora imagine receber esse diagnóstico aos vinte e cinco anos, no final do pior ano de sua vida? Pois é o que aconteceu comigo hoje. Tumor cerebral. Está do tamanho de uma azeitona, mas pode chegar ao tamanho de uma bola de ping-pong em poucos meses.
Na verdade, ninguém me disse que é inoperável. Não com todas as letras. Meu médico acabou de me dizer que a cirurgia é arriscada e que minhas chances em números são: 25% de acordar com alguma sequela, como paraplegia, 5% de acordar curada e sem sequelas. Os outros 70%? Morte, é claro.
― Quanto tempo eu tenho sem a cirurgia? ― pergunto ao doutor recentemente premiado por ser o melhor neurocirurgião aqui do Japão.
― Seis meses, no máximo. Esse tipo de tumor é um dos mais agressivos e...
Levanto, cato minha bolsa e deixo seu consultório. Se só tenho seis meses, não vou desperdiça-lo ouvindo sobre a potência de meu tumor.
O que vou fazer nesse meu último semestre de vida? Pior que nem tenho dinheiro para gastar esse resto de tempo viajando pelo mundo. Isso tudo porque lá, no comecinho do ano, caí na besteira de investir toda a minha parte da herança que meu pai deixou, naquela maldita empresa, lá no Brasil. Onde eu estava com a cabeça? Só pode ter sido a droga desse tumor. Com certeza foi ele.
Eu não sou louca, apesar de ter uma bomba relógio prestes a explodir dentro da minha cabeça. Deixe eu resumir minha droga de vida. Eu tinha pouco mais de quatro anos quando fui morar num abrigo. Não me lembro de ter um pai, mas lembro dela, aquela vaca maldita que me colocou no mundo. Ok, nem sempre a achei uma vaca maldita. Eu a amava incondicionalmente naquela época. Ela era divertida e muito carinhosa. Costumava dizer que um dia sairíamos daquela droga de vida e eu ia poder escolher todos os brinquedos que eu quisesse.
Eu e a desnaturada, morávamos num lugar estranho com mais um monte de pessoas. Havia brigas por comida e agasalhos praticamente todos os dias. Eu odiava aquele lugar e tinha medo de algumas pessoas. Mas ela me protegia e não me deixava morrer de fome ou de frio, então estava tudo bem. As coisas melhorariam um dia e teríamos uma casa bonita, todinha nossa. Ela sempre me dizia isso. Mas um dia ela se cansou de brincar de mãe e filha. Se cansou de mim. Nem se deu o trabalho de me explicar o porquê, tampouco prometeu voltar. Me deixou lá e se foi, transformando todos os meus dias a partir dali num inferno. Não há um dia que eu consiga bloquear essas recordações dolorosas. Nunca vou perdoá-la por ter desistido de mim e também acho justo culpa-la também pelo tumor em minha cabeça. Uma vez eu li em algum lugar que quando não resolvemos as coisas em nossa mente, elas se convertem em enfermidades em nosso corpo.
Eu nunca mais a vi. Nunca mais soube dela até janeiro do ano passado, quando comecei a pesquisar na internet uns lugares para ficar, caso viajasse de férias para o Brasil. Então lá estava ela naquela matéria. A manchete dizia: "Do Lixo ao Luxo - Mulher que viveu dias infernais na cracolândia, hoje é uma empresária de sucesso".
Eu a reconheci imediatamente, antes mesmo de ler a reportagem e ver seu nome lá. Barbara Guimarães. A matéria a enaltecia por ter superado o vício, a prostituição e todas as mazelas que andam junto das drogas. Falava sobre seus altos e baixos, sobre a importância de ter uma família. Bárbara se casou e parece que tem um filho. Em momento algum a reportagem citou que ela teve uma filha. Certamente a Bárbara esqueceu desse detalhe, afinal, foi tão fácil se desfazer de mim. Desliguei o computador e desisti de viajar para o Brasil. Era melhor não chegar tão perto de minhas origens e esquecer meu passado.
Quando meus pais me adotaram, eu ia fazer cinco anos. Morava no abrigo há alguns meses e não tinha um só dia que eu não esperava que minha mãe aparecesse para me buscar. Então apareceu aquele casal simpático e já bem idosos. Me afeiçoei a eles e eles a mim bem depressa. No mesmo ano, viemos para cá, país onde nasceram e administravam seus negócios. Eles eram pessoas excepcionais, me tratavam com todo carinho, embora as demonstrações de afeto nessas terras, sejam totalmente diferentes do Brasil. Aqui não tem tantos abraços e beijos. As pessoas quase não se tocam e acham isso absolutamente normal. Eu já não acho. Deve ser o sangue quente brasileiro correndo em minhas veias, pois vim para cá tão pequenininha e ainda assim, nunca me senti em casa, morando aqui. Mas eu os amava, de todo o meu coração. Minha mãe adotiva morreu há três anos e meu pai, morreu há apenas sete meses. Voltei a ser sozinha no mundo. Entende agora por que é que não posso arriscar uma cirurgia tão perigosa? Não é por medo de morrer. É por medo de viver tendo limitações graves. Se com uma família amorosa seria difícil, imagine sem ninguém lá, para segurar a minha mão quando - e se - eu acordasse?
Sei que protelei meu retorno por mais de vinte anos, mas acho que preciso voltar. Preciso conhecer meu país e acho que preciso juntar forças e olhar nos olhos daquela mulher outra vez. Isso nunca foi um plano, mas agora que sei que vou morrer mesmo, as perspectivas mudaram. Além do mais, investi todas as minhas economias naquela maldita empresa que ela criou e ainda nem dei as caras. Acho que é hora de me apresentar.
Seis meses de vida é o que tenho, né? Vou usar o primeiro mês para encarar aquela mulher enquanto ainda estou lúcida. Não sei por quanto tempo esse tumor vai deixar meu cérebro funcionando. Quero olhar nos olhos dela e perguntar... Nem sei o que vou perguntar. Só quero olhar para ela e por um fim nessa história inacabada que tivemos. Ela sequer teve a coragem de me explicar qualquer coisa. Simplesmente me descartou, de cabeça erguida, sem um adeus, sem um beijo de despedida ou qualquer outra demonstração de afeto. Como uma pessoa pode te jurar amor eterno num dia e no outro te deixar para trás como se você nunca tivesse existido? Nem sei se tenho tempo para compreender isso.
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Mais que o Acaso (Complefo Na Amazon)
RomansaRejeitada pela mãe biológica na infância e adotada por um simpático casal, Luísa cresceu no Japão, completamente longe de suas origens. Mas após receber um diagnóstico de uma grave doença que pode lhe matar em alguns meses, ela decide voltar ao Bras...